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Crítica | A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas é obra-prima instantânea

Por| Editado por Jones Oliveira | 22 de Abril de 2021 às 21h00

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Com que frequência vejo obras-primas? O tempo todo. Clássicos canônicos do cinema? Não, estreias. Na busca pelos melhores (segundo sabe-se lá qual conjunto de regras), obras impressionantes estão sendo quase que instantaneamente perdidas em meio à profusão de produções que chegam às plataformas online todos os dias. Com a curadoria em nossas mãos, o preconceito pode nos fazer ignorar uma obra-prima que acaba de nascer diante dos nossos olhos, como é o caso da animação A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas.

Muito mais acessível (portanto, mais necessário em nossos tempos), A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas não recai apenas em grandes parábolas sobre a humanidade, recorrendo também ao microcosmo de cada espectador. Mesmo com um apocalipse robô e com elogiosas caricaturas familiares, este é o filme pé no chão que estávamos precisando. Sem delegar o intelectualismo às metáforas refinadas e jogando as mensagens “subliminares” na nossa cara, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas só precisava ser brasileiro para ser tão maravilhosamente familiar para nós como é a igualmente incrível Irmão do Jorel.

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Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

A Família Perfeita

A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas tem muitos pontos fortes. Para onde olharmos, veremos algo novo ou a reciclagem necessária do que já é uma exigência formal. Tecnicamente, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas é ainda mais original por trazer uma animação cujo traço pode ser reconhecido como sendo de um artista (ou um grupo de artistas) e não de um estúdio.

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Ainda que comercialmente compreensível, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas não pode continuar sendo divulgado como um filme de produção. Embora os nomes Phil Lord (Homem-Aranha no Aranhaverso) e Christopher Miller (Uma Aventura Lego) chamem a atenção, a presença deles deveria ser apenas uma garantia de qualidade. A técnica de animação Sony que estamos vendo nos Aranhaversos, de sua parte, mostra sua potência como possibilidade de união das técnicas 2D e 3D e valoriza a equipe artística, menos submissa à padronização de um universo ou de uma marca.

Antes de assistir ao filme, no entanto, me chamou muito mais a atenção o fato de que a dupla de diretores e roteiristas formada por Michael Rianda e Jeff Rowe tem no currículo a série animada Gravity Falls: Um Verão de Mistérios. Uma série perfeita, da produtora de animações "perfeita". Não gratuitamente, a nova animação da dupla questiona a ideia de perfeição, que casa perfeitamente com os abalos da contemporânea sociedade moldada pelo uso de redes sociais.

Símbolo colorido e discreto, uma marca chamada “pal” (gíria da língua inglesa para “amigo”), um jovem visionário da tecnologia chamado Mark e Vale do Silício. Una os pontos. Há algum tempo que discutimos sobre as imagens de perfeição das redes sociais e vimos diversas quebras dessas perfeições, sobretudo nesse ano de pandemia. É impossível ignorar a relação de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas com o ambiente que nos cerca, porque este não é um filme para quem quer pensar o passado, nem é uma carta às gerações futuras. A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas é sobre nós: imperfeitos tendo que lidar com as imperfeições do mundo.

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As redes sociais nos dão falsas noções de conexão e distorcem nosso modo de ver a realidade, basta notarmos como mudaram os padrões de beleza a partir do uso de filtros de Instagram, por exemplo. Contraintuitivamente, no entanto, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas não demoniza essa tecnologia. Como se já não bastasse ser pedagogicamente mais sensato (ironizando atitudes como proibir o uso de celular durante o jantar), a animação consegue ser ainda mais genial ao propor reflexões de uma forma metalinguística.

A família Mitchell é fruto de um projeto social que deu errado. Os vizinhos, que têm a suposta família perfeita, lembram muito o que vimos como auge suburbano do sonho americano, enquanto os Mitchells soam mais como as famílias de sitcoms: todos têm seus próprios traumas e problemas, muitos deles causados por problemas sociais que nos colocam em dilemas e nos forçam a escolher entre nossos sonhos e o bem-estar das pessoas que amamos e queremos proteger.

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No Brasil, Irmão do Jorel nos mostra o resultado da cópia tupiniquim do sonho americano que, aqui, deu errado em dobro. Ainda assim, a identificação com os Mitchells não se perde, justamente porque eles são a representação de uma família que, por ter tantas diferenças, também é a mais propensa à empatia, ao diálogo e ao amor, sentimento que não é entendido como algo inerente ao ser humano na animação.

Pal é uma vilã interessante justamente por trazer o que muitos filmes nos mostraram, mas não têm coragem (?) de nos falar diretamente: as inteligências artificiais sempre têm dificuldade de aprender o amor, porque nós, humanos, raramente demonstramos amor nos níveis que acreditamos demonstrar. Não amamos nossos iguais, não amamos os animais, não amamos a natureza simplesmente porque nascemos humanos. O chute no saco foi mais do que merecido.

O amor também é tratado como uma construção, algo que precisa ser cultivado e que é facilmente abalado quando a confiança é posta em xeque. Assim, Pal tem toda a razão ao não compreender os humanos através do que vê. Como máquina, também é perfeitamente plausível que suas conclusões sejam rápidas, assim como suas ações — uma excelente sacada de roteiro, que nos poupa dos clichês e nos insere logo na maravilhosa ação non sense de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas.

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A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas é uma animação perfeita, porque é uma obra de arte com alma. É o fruto da produção de artistas que, como tais, também são humanos profundamente influenciados pelas suas vidas, deixando isso transbordar no filme de forma orgânica. A família perfeita foi muito eficiente ao fugir dos robôs, mas não devemos admirá-los por isso. A pergunta que resta é: se eles têm tantas habilidades, por que o pirão deles veio primeiro e eles não tentaram ajudar os vizinhos?

A resposta surge maravilhosamente depois e liga todos os pontos, inclusive os metalinguísticos:

- Obrigada, Linda! Vocês foram Incríveis! Eu admito, fiquei com inveja. - O quê? Você com inveja da gente?- Vocês foram tão valentes e tão autênticos. Sabe de uma coisa, Linda? Você me inspirou... a te seguir no Instagram. - Ué, você já não me seguia? - De nada, Linda.

*O trecho acima é uma transcrição da dublagem brasileira; grifo meu.

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Para todos

Sabemos que crianças são o grande público-alvo da maioria das animações e que comumente as histórias podem ser enfadonhas para os adultos que não aguentam mais o sol nascendo na fazendinha e afins. As grandes animações, no entanto, conseguem ser excelentes filmes para toda a família, mas o que geralmente vemos é que, para os adultos, as mensagens estão bastante escondidas e, muitas vezes, demandam um esforço filosófico do espectador.

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A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas não abandona os pensamentos profundos e as discussões filosóficas estão lá, mas seu acesso não é oculto. A vida em família nunca é fácil, sobretudo quando problemas pessoais se chocam. Muita gente não aguenta mais escutar universitários com seus violões desafinados cantando Legião Urbana, mas “Pais e Filhos” continua vivo e certeiro:

Você me diz que seus pais não o entendemMas você não entende seus pais Você culpa seus pais por tudo, isso é um absurdoSão crianças como vocêO que você vai serQuando você crescer?

É pelo reconhecimento de que não somos perfeitos que A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas conquista. O público é ainda maior pela façanha do roteiro de não focar unicamente no universo infantil e adotar a figura da adolescente cheia de dúvidas como uma ponte entre infância e vida adulta, um momento de muitos questionamentos e mudanças.

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Não a toa, a aventura sci-fi é também um road movie, gênero cinematográfico no qual geralmente vemos personagens evoluírem sua psique a partir dos eventos que os colocam em situações completamente diferentes daquelas que geralmente vivenciam em seu cotidiano. A rotina dos Mitchells já estava ameaçada pela mudança de Katie, mas somente algo como uma viagem em família poderia colocar todos os personagens em aventuras particulares próprias.

Assim, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas consegue gerar identificação entre crianças, adolescentes e adultos que formam todo tipo de família, inclusive as de pais de pet, muito bem representadas na figura do pug esquisito (afinal, quem tem um cachorro esquisito sabe que os cachorros “perfeitos” são frutos da “perfeição” do adestramento). O pug, inclusive, mereceria uma crítica à parte, tamanha a genialidade desse maravilhoso alívio cômico (de uma história repleta de comicidade).

Sementinha

A ideia é simples. Se disfarçar de robô, usar o código bomba e salvar o mundo. Claro que acabar com o mau uso da internet, das redes sociais e dos smartphones é uma excelente ideia, mas isso só funciona dentro da história. Aqui fora, não temos chances contra o Vale do Silício. A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas, no entanto, nos mostrou que não é um filme arrogante, que quer mudar o mundo da mesma forma como tentam muitas das tais obras perfeitas.

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O plano de Katie, no roteiro, é inicialmente ignorado e, posteriormente, acaba funcionando, com a família conseguindo pelo menos entrar na instalação Pal. O resto é improviso, como também costuma ser no nosso cotidiano. Mas a ideia do código-bomba soa ainda mais profunda e interessante a meu ver.

É realmente brilhante o modo como a direção assume as novas linguagens audiovisuais na direção da própria animação. Embora o filme não dê indício algum disso, gosto de imaginar A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas como o primeiro longa-metragem de Katie (poderia ser seu TCC, talvez), já que o filme todo parece ser uma versão amadurecida dos seus vídeos caseiros.

Antes de escrever esta crítica, tive a oportunidade de conversar com Michael Rianda, que comentou sobre como essas novas linguagens audiovisuais (que surgem com as redes sociais) influenciaram o trabalho de direção do filme. Rianda disse ter sido “realmente empolgante” incorporar esses formatos, o que é possibilitado pelo fato de Katie ser uma realizadora. Rianda acredita que isso os ajudou a contarem de uma forma melhor a história de Katie: já que a personagem é realizadora, por que não incorporar o estilo de direção dela ao do filme? Isso não apenas faz sentido, como funciona perfeitamente.

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A ideia também oferece para as gerações YouTube uma indicação de que há algo bom naquilo que eles estão vendo, que é a arte, a criatividade, o faça você mesmo… A tecnologia tem ares vilanescos e afeta a dinâmica das famílias, mas o bom uso das tecnologias também pode ser uma ferramenta, porque, na arte, tudo se aproveita.

Incorporar a linguagem de Katie à direção, no entanto, não foi apenas uma estratégia (e nada em A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas parece ser apenas uma estratégia). Enquanto muitos filmes tentam nos manipular (e temos muitos cursos que “formam cinéfilos” explicando “Como ver um filme”, porque de fato a indústria faz isso conosco), A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas parece ser um daqueles raros casos de um grande filme que parece muito mais uma obra de arte sincera do que um produto criado com vistas ao seu comércio.

Na entrevista, Rianda confirmou isso ao comentar sobre essa direção compartilhada com a sua personagem, Katie. Incorporar a linguagem audiovisual de redes sociais como o YouTube não foi uma estratégia para conquistar as pessoas mais influenciadas por isso (até mesmo porque essa seria uma premissa que tornaria o filme hipócrita, sobretudo diante da personagem Pal. E este não parece ser um filme hipócrita). Rianda esclareceu: “Fazer isso foi muito divertido, porque isso nos permitiu fazer coisas que não poderíamos... nos deu uma licença para experimentarmos mais do que poderíamos [experimentar] de outra forma.”

Isso revela um pouco do processo criativo por trás de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas, muito mais focado nos desejos e interesses do artista e menos interessado em fisgar espectadores a qualquer custo, o que transborda constantemente na tela e é selado pela foto da verdadeira família Mitchell no início dos créditos finais. Rianda explicou ainda que esse formato possibilitou a eles novas formas de se aprofundarem na psique, nas emoções de Katie: “Porque quando ela está se sentindo feliz, por exemplo, você tem faíscas [sparks] saindo das suas mãos, você pode realmente ver e sentir o quão animada ela está. E o mesmo acontece quando ela está mais negativa ou algo assim." Ele explicou, ainda, que essas ferramentas foram usadas justamente para que sentíssemos mais como seria estar na pele de Katie. É importante notarmos a diferença: aqui, a identificação não é forçada, mas estimulada através de recursos que potencializam a empatia.

A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas é um filme que dialoga com pais, filhos, pessoas de todas as idades, amantes de pets, fãs de ficção científica, pessoas assustadas com os rumos da tecnologia… enfim, muitas pessoas. Apesar de parecer um filme tão íntimo, que nos convoca a viver por alguns minutos a vida bagunçada da família Mitchell, a animação é universal por seu apelo ao normal: ninguém é perfeito. E é lindo que sejamos assim. Nós só precisamos nos entender — e a arte pode ser arma mais forte que temos para isso.

A Família Mitchell e a Revolta das Máquinasestreia no catálogo da Netflix na sexta-feira, dia 30 de abril de 2021.