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Crítica | 3% encerra com sucesso o ciclo de um futuro distópico cruel e desigual

Por| 17 de Agosto de 2020 às 13h13

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Divulgação: Netflix
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Chegou ao fim a era da primeira série brasileira original da Netflix. 3%, criada por Pedro Aguilera, ganhou a sua quarta e última temporada no dia 14 de agosto, trazendo a despedida de Maralto, do Continente e do Processo.

3% estreou ainda em 2016, contando a história de um futuro distópico em que o mundo é dividido em duas partes: aqueles que vivem no Continente, em extrema pobreza e sem os recursos básicos necessários para sobreviver, e aqueles que vivem no Maralto, um paraíso construído há dezenas de anos e que somente quem "merece" vive lá. No caso, esses merecedores são apenas 3% da população.

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Atenção: esta crítica contém spoilers de 3%

Enquanto na primeira temporada acompanhamos como funciona o Processo para entrar no Maralto, quando as pessoas tentam passar por várias etapas de testes físicos, psicológicos e extremamente cruéis ao completar 20 anos, na última temporada acompanhamos o fim dele.

Os novos episódios chegam com sede de vingança e com o intuito de destruir o Maralto de vez, levando com ele todo esse sistema que, desde que surgiu, é visto por muitos como injusto, e que de fato é. E para chegar nesse objetivo, muitas coisas precisam ser sacrificadas, assim como alguns ideologias e questionamentos morais. O roteiro facilitou bastante para que o golpe da Concha acontecesse, uma vez que o Maralto convidou o grupo de Michele (Bianca Comparato) para conhecer as instalações e discutir acordos de paz.

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Na terceira temporada, após um golpe de Marcela (Laila Garin) na Concha, provocando uma tempestade de areia e, indiretamente obrigando Michele e fazer um tipo de Processo para decidir quem deveria viver lá até que tudo fosse consertado, muitos se questionaram qual seria a diferença do novo local para o Maralto. Então, o grupo dos rebeldes decide que a única solução é começar tudo de novo, dando oportunidades iguais a todos. Para isso, o Maralto precisa acabar. Desde o início da temporada já entendemos que tudo terá que ser resolvido em guerra, uma vez que os mais privilegiados, no caso aqueles que passaram no Processo, nunca querem abrir mão do conforto que recebem para ajudar pessoas de classes menos favorecidas.

Qualquer analogia ao mundo real, com certeza, não é mera coincidência, principalmente quando estamos falando de um país como o Brasil, que reúne pessoas das mais diferentes raças, etnias e classes sociais e que, mesmo com tanto diversidade, não respeita aqueles com quem divide um país tão vasto em culturas e recursos naturais. Na série, há até mesmo o famoso "complexo de vira-lata", quando a Igreja, que vive no continente, idolatra aqueles do Maralto realmente acreditando que eles são superiores e que precisam se curvar a eles.

A série acabou criando um grupo de heróis que, naquele mundo, surgiu por acaso. Michele, a grande líder, era uma integrante da Causa que, apesar de saber que precisaria radicalizar para conseguir o que quer, sempre colocou a humanidade em primeiro lugar. Rafael (Rodolfo Valente), ou Thiago, que também pertencia à Causa e precisou fazer grandes sacrifícios para chegar no objetivo final de acabar com o Processo, começou como um personagem odiável e terminou como um grande justiceiro.

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Está no grupo também a brilhante Vaneza Oliveira, como a personagem Julia, que sempre foi uma grande vítima do sistema e que nunca deixou o ódio a corroer, abrindo mão de decisões extremas para não compactuar com o que não concorda. Marco (Rafael Lozano), que iniciou na trama como um grande vilão também acabou se sacrificando pelo que acredita, conquistando ampla noção de que não queria mais que a sua linhagem, os Álvares, continuasse sendo de pessoas cruéis e incapacitadas de terem sentimento.

Todos esses personagens, sejam os que estiveram ali desde o início ou os que foram surgindo no decorrer da história, foram bem construídos para mostrar todos os lados de como a instituição Maralto e o seu Processo afeta no caráter das pessoas. Alguns, no entanto, acabaram sendo deixados de escanteio e ganhando fins mais preguiçosos, mesmo que tenham agido de forma importante para a construção da história em algum momento, como Gloria (Cynthia Senek) e até Fernando (Michel Gomes), que mesmo morto há bastante tempo poderia ter aparecido em forma de flashbacks com frases coniventes com o que está acontecendo.

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Entre os vilões corrompidos pelo sentimento de superioridade do Maralto, 3% trouxe personagens bem formados, como a própria Marcela, ou ainda o frio Leonardo Álvares, que nos traz à tela Ney Matogrosso na medida certa, precisando apenas de poucos e impactantes diálogos que já revelam pelo que essa família passa. Já André (Bruno Fagundes) teve menos tempo ainda do seu protagonismo malvado, deixando uma sensação de que ele poderia ter feito muito mais. O personagem, no entanto, conseguiu transparecer a sua fixação pelo poder como algo que já carregava consigo desde criança, que só precisou de uma oportunidade para aflorar.

Por fim, a solução para trazer a igualdade entre as pessoas não teria que surgir apenas como uma consequência trazida com a destruição total do Maralto e a união forçada em ambas as populações, mas também com o desejo deles e a disposição para, juntos, fazer tudo mudar. Os testes, que foram criados pelo Casal Fundador, até voltam a aparecer nos momentos finais, mas como sempre só gera frustração para quem perde e para quem ganha. É preciso fazer como Joana: se impor, apresentar propostas que beneficiam a todos e trazer a esperança de que tudo vai mudar.

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3% é uma série de política pura, o que não dá para escapar quando se fala de direitos básicos do ser humano e de questões sociais. Tudo isso junto aos efeitos especiais e toda a tecnologia que perdurou por anos no mundo e que ainda não conhecemos, a trama com certeza acaba sendo um marco para as produções brasileiras, mas que infelizmente não recebeu toda a divulgação necessária.

A série acaba passando por despercebida para o público brasileiro, muitos desses sendo os que, provavelmente, já torcem o nariz para tudo o que é nacional. 3% traz as suas brasilidades, o que não pode faltar em produções daqui, pois já é hora de valorizar ainda mais toda a bagagem que os profissionais do país têm para entregar. Porém, vemos uma nova fórmula que já é vinda do exterior há bastante tempo e que recebe atenção mesmo com seus aspectos negativos, e isso acaba mostrando que somos capazes de criar, apreciar e dar espaço ao produto nacional, só é preciso querer.

As quatro temporadas de 3% estão disponíveis na Netflix.