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A vingança dos "anti-LinkedIn": perfis ironizam clichês da vida corporativa

Por| Editado por Claudio Yuge | 21 de Setembro de 2021 às 19h20

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Reprodução/ Elisa Ventur/Unsplash
Reprodução/ Elisa Ventur/Unsplash

"Sabe quem é pago pra vestir a camisa da empresa? Jogador de futebol." "O Jeff Bezos foi ao espaço. Infelizmente, ele voltou." O feed do LinkedIn, a rede social focada na cultura corporativa, reforça constantemente a ideia de que todo brasileiro tem o emprego dos sonhos. A não ser que frases como as que começaram esse texto viralizem de repente, nos dando um respiro de autoreflexão e fazendo pensar: "Ufa, não sou só eu que acho ridículas essas lorotas de coach". Agradeça aos "anti-LinkedIn", perfis e postagens que colocam na berlinda o faz-de-conta da vida de escritório.

Fora da internet, a saúde mental do trabalhador brasileiro anda mal, bem antes da pandemia de covid. Os dados mais recentes da Organização Mundial de Saúde (de 2017) mostravam que nosso país era campeão mundial de ansiedade, com 9,3% da população afetada, e o quinto em depressão, chegando a 5,8% do público. Em números absolutos, isso dava na época mais de 18,6 milhões e 11,5 milhões de pessoas, respectivamente. A situação empregatícia deve ter muito a ver com isso. O desemprego teve recorde de 14,7% e atingiu 14,8 milhões de brasileiros em abril deste ano, segundo o IBGE. E como notícia ruim é boia, está em discussão no Congresso uma nova reforma trabalhista que promete criar até uma modalidade de trabalho sem direito a férias e 13º salário.

Dito tudo isso, é bastante compreensível que postagens profissionais motivacionais no LinkedIn, rede social corporativa usada por mais de 50 milhões de brasileiros, pareçam cada vez mais fora de propósito para muita gente. Mas o fenômeno é relativamente antigo: a página do Facebook Vagas Arrombadas ironiza desde 2017 as ofertas ruins de emprego e conta com mais de 475 mil seguidores. Há também desde 2019 na rede social o grupo fechado Fanfics Corporativas, com mais de 14 mil membros, com ironias às histórias edificantes deste universo.

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Demanda de sênior, salário de júnior

Já na plataforma da Microsoft, alguns dos perfis que ironizam os clichês do trabalho são os do carioca Bruno Lacerda, ex-redator publicitário e estrategista de conteúdo de um banco, e de Tatiany Lukrafka, assessora de comunicação da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Lacerda usa sua conta para criar artes e memes com frases e situações sarcásticas sobre o lado ruim do mercado de trabalho, como vagas ruins e processos seletivos injustos. Já Lukrafka criou o Plantão Linkedinho, um tipo de "noticiário" sobre empresas e virais do LinkedIn, com direitos a comentários ácidos sobre os temas.

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Segundo Lacerda, a ideia surgiu após perder seu emprego anterior, em fevereiro deste ano. "Quando eu comecei a focar bastante no LinkedIn, pensei: 'Ah, já tô sem emprego mesmo. O que de pior pode acontecer?'. E como tem pouca gente que faz isso na rede, acabei achando muito público que concordava comigo", disse. Alguns de seus temas preferidos são as vagas de emprego que exigem muito e pagam pouco e as lendas dos recrutadores sobre retorno ao candidato rejeitado na seleção.

Lukrafka não passou por esse trauma, mas ao entrar no LinkedIn ela entendeu por que muita gente considera a plataforma uma piada. "Qualquer situação gera um grande aprendizado; é comum ver textos felizes de agradecimento após uma demissão e por aí vai. No entanto, sabemos que as coisas não estão indo tão bem assim. É só mandar um WhatsApp a seu amigo para ver que ele está enfrentando vários problemas pessoais e não está conseguindo se concentrar para estudar", detona.

Nesse contexto, uma postagem da jornalista mineira Jéssyca Rocha viralizou bastante em junho ao parafrasear o viral do humorista Esse Menino sobre a troca de e-mails entre o governo e a Pfizer para vacinas de COVID. Frustrada por não receber retorno dos processos de seleção de emprego, ela parodiou o meme com indiretas aos silêncios do "querido recrutador" e criticando até a suposta hipocrisia de empresas que se dizem "defensoras dos processos humanizados". Recebeu mais de 21 mil reações e 570 comentários. Depois ela fez uma versão em vídeo da piada.

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Uma coisa que vem à mente: essas pessoas não podem ficar mal vistas pelas empresas que seguem as aparências corporativas? Bom, pelo menos por parte do público a resposta tem sido bem positiva e de identificação imediata. "Eu não tinha noção da quantidade de pessoas que compartilhavam do mesmo sentimento em relação aos processos seletivos", disse Rocha ao Canaltech. "Recebi muito apoio porque elas se identificaram, me chamaram, contaram suas histórias, comentaram e compartilharam o texto e o vídeo. Apesar de ter me preparado para as críticas também, me surpreendi. Só recebi uma, das quase 21.400 que viram."

O trio é uníssono ao dizer que o mercado tem suas falhas, mas que elas não acontecem de forma deliberada; é mais um resultado de anos incorporando maus hábitos. "Acho que a maioria das empresas precisa de mais gente do que contrata, daí precisam que os poucos funcionários com muitas funções tenham 'sentimento de dono' e outras besteiras assim. Eu não vejo problema nenhum em acumular funções, desde que o salário seja compatível, mas o que a gente vê por aí é o contrário. Hoje a maioria das empresas quer alguém que entregue uma demanda de sênior recebendo um salário de júnior", defende Lacerda.

É até fácil entender porque esse assunto não anda sendo discutido: a corda sempre vai arrebentar pro lado mais fraco, que é do trabalhador. A gente não pode cobrar das pessoas que sejam sinceras sobre seu local de trabalho porque todo mundo precisa de dinheiro pra sobreviver. Mas como hoje eu tô numa empresa que me dá liberdade pra falar, eu coloco o dedo nesse monte de ferida do mercado por todo mundo que pensa igual mas não pode abrir a boca
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Lukrafka lembra que esse contexto piorou com a pandemia, que não só aumentou o desemprego, mas matou familiares e amigos, levou à impessoalização da comunicação ao forçar tudo pro ambiente online e deteriorou a saúde mental de muita gente. "Diversos trabalhadores estão sofrendo em busca de recolocação. Vários profissionais produtivos estão, na verdade, exaustos e deprimidos. De uns tempos pra cá, as empresas passaram a considerar essa pauta [saúde mental] importante, mas as companhias continuam incentivando ou permitindo o WhatsApp e a ligação fora de hora, o trabalho no final de semana, o assédio de gestores despreparados, os prazos para ontem", diz a jornalista.

Há solução para isso?

Para Elza Veloso, doutora em administração pela USP (Universidade de São Paulo) e professora de recursos humanos da FIA (Fundação Instituto de Administração), essa situação explicita uma certa crise velada nos departamentos de recursos humanos das companhias. "Há vezes que o pessoal tem que fazer contratos e campanhas motivacionais com pouquíssimos recursos, aí o RH tem que se tornar 'criativo' e com isso vêm as situações degradantes. O que acontece é que a empresa dificilmente começa a crescer pelo RH, mas pelos produtos e serviços que vão oferecer ao público. Assim, a cultura da empresa se forma desprezando o RH."

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A professora acredita que essa onda de ironizar os causos de empregos é uma reação saudável ao problema. "Muitos profissionais de RH estão no LinkedIn e eles aprendem com certas situações. Os memes acabam funcionando como um canal de denúncia e há o potencial de gerar uma autocrítica nas empresas. Esse negócio de não retornar aos candidatos, por exemplo, é uma das desgracas da área. Isso viraliza e é como se dissessem: o rei está nu", comenta Veloso.

Mas seria preciso ir além das redes sociais para acabar com as malandragens do tipo "salário a combinar". Na visão de Veloso, leis trabalhistas, proteções sociais mais dignas e sindicatos mais fortes reduziriam o problema. "Oferecer empregos mais estáveis também gera atratividade por parte do empregador", argumenta.

Cristiano Nabuco de Abreu, pós-doutor em psicologia clínica de dependências tecnológicas da USP, crê que a solução para os problemas da cultura corporativa surgirá a partir de um debate aberto e franco. "A gente sabe que as histórias de LinkedIn estão hipervalorzadas e lógico que isso nao se sustenta. O ponto de partida é a discussão nessas plataformas começar a ser menos romântica e mais realista. Nada mais justo do que trazer esses temas do cotidiano, principalmente aos RHs da vida", aponta.