Crítica | Lixo Extraordinário e a realidade por trás da obra milionária
Por Beatriz Vaccari |
Em 2020, foi divulgado pela Netflix que durante o período de quarentena global houve uma alta do interesse em produções documentais no catálogo, principalmente após o lançamento da série A Máfia dos Tigres, focado na vila de Joseph Allen Maldonado-Passage, popularmente conhecido como Joe Exotic. Disponibilizada em março, estima-se que a produção tenha atingido um público de 34,3 milhões de espectadores únicos nos primeiros 10 dias de lançamento.
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É curioso que em tempos de tanto negacionismo e incertezas o público que cumpria distanciamento social em casa tenha optado por consumir obras documentais, já que o mais esperado para esse tipo de situação seja justamente o escapismo. Ainda para afirmar que o sucesso de A Máfia dos Tigres não tenha sido uma simples coincidência, em meados de 2020 foi observado uma crescente popularidade d'O Dilema das Redes, que assim como a série sobre Joe Exotic, também esteve no pódio de títulos mais assistidos do ano passado na plataforma.
Pensando em investir mais nesse tipo de produção, chegou ao catálogo da Netflix na última sexta-feira (8) o documentário Lixo Extraordinário, focado no trabalho do fotógrafo e artista plástico Vik Muniz e que foi pensado como uma jogada comercial focada no exterior do início ao fim, mas graças a equipe cinematográfica por trás do projeto, acabou dando um ar mais humano do que uma simples história com início, meio e fim que poderia facilmente igualar-se a qualquer filme sobre super-heróis.
Vicente José de Oliveira Muniz, ou como prefere ser chamado após anos radicado nos Estados Unidos, Vik Muniz, é um artista plástico brasileiro que em pouco mais de noventa minutos conta a história de toda uma população que leva uma vida ao redor e por causa do lixo no Jardim Gramacho, o maior aterro sanitário da América Latina, localizado no Rio de Janeiro. O projeto tem como único objetivo ser ovacionado pelo público estrangeiro, já que seu formato e narrativa acenam comercialmente para o mercado norte-americano, desde a escolha da cena que abre o documentário (um trecho de uma entrevista com Jô Soares, cujo programa segue o modelo semelhante aos do talk shows dos Estados Unidos), o desenrolar que é narrado em inglês pelo fotógrafo brasileiro (tanto em conversas com seus assessores e parentes, todos brasileiros) e a história de salvador que fica subjetivamente entregue nas entrelinhas.
Logo nos primeiros minutos o público é apresentado a Vik Muniz e como o artista viu sua carreira saltar de um ponto ao outro quando resolveu criar a série Crianças de Açúcar, retratos de crianças de famílias de baixa renda que cortam canas de açúcar em St. Kitts, no Caribe. O trabalho foi reconhecido internacionalmente após Muniz ter a sacada de trabalhar as fotografias utilizando apenas açúcar, elemento que faz parte do cotidiano dos jovens retratados e que trazem referência tanto à inocência da infância quanto ao material que os submete à pobreza.
Em Lixo Extraordinário, Muniz decide ajudar a comunidade carioca que trabalha no Jardim Gramacho, descritos por eles mesmos como "catadores de materiais recicláveis". Aos 30 minutos de produção, o documentário fisga o público a partir do momento em que se torna uma experiência imersiva, e não vista superficialmente como um filme de caridade. Há muito material e história por trás da obra que dará àquele povo melhores condições de vida. Mérito da diretora Lucy Walker humanizar a narrativa e colocar o "dedo na ferida" quando necessário, acompanhando e contando a história de cada uma das pessoas que trabalha diariamente no meio de materiais que o restante da população descarta.
Além do lixo e da rotina com recicláveis, Lixo Extraordinário explora as relações interpessoais entre os trabalhadores do Jardim Gramacho, aprofundando-se em suas vidas, dificuldades e até mesmo vitórias de quem acumula quase três décadas de experiência no aterro. Em depoimentos com os mais diversos personagens, o espectador é apresentado à mais desconfortável e desesperançosa realidade de uma população inteira que sente cada conquista da maneira mais genuína e sincera.
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Diante de tantas histórias, a montagem das obras de Vik Muniz que acabariam vindo para leilão no final da produção acaba sendo uma mera coadjuvante. Lixo Extraordinário visa apresentar muito mais ao público do que o processo de criação de quatro gigantes retratos feitos a partir de lixo e materiais recicláveis e que, posteriormente, viriam a ser vendidos por valores milionários. O documentário preocupa-se em transmitir através de depoimentos, narrativas e diversos enquadramentos um dia a dia que está longe de ser a realidade de muitas pessoas no Brasil, mas que facilmente é ignorada por boa parte da população.
A experiência, por mais que desconfortável e de se assistir em silêncio, é inigualável; parte do mérito é responsabilidade da edição de Pedro Kos e fotografia de Ernesto Herrmann e Dudu Miranda. Lixo Extraordinário foi lançado há uma década e chegou a ser reconhecido com uma indicação ao Oscar do ano seguinte na categoria documental; Estrelado por Vik Muniz e por toda a população trabalhista do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, o documentário está disponível na Netflix.