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Crítica | It: Capítulo Dois e a microrrepresentação do mundo

Por| 06 de Setembro de 2019 às 20h15

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Warner Bros.
Warner Bros.

Muito do que defendo ser a função da crítica às vezes parece encontrar algumas barreiras. Um desses obstáculos, quando surge, diz respeito a um ponto fundamental: a amplitude da experiência do espectador. Se prolongar o que o público experienciou ao assistir a um filme precisa ir além de taxar se o filme é bom ou ruim – ou, pior, se deve ser assistido ou não –, também não há muito o que fazer quando as ferramentas estão bem expostas, restando uma avaliação mais simplória (sem mau sentido) mesmo.

Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

O medo devora corpo e alma

It: Capítulo Dois parece forçar as observações mais fáceis ao, em um primeiro olhar, expor-se de maneira unidimensional e maniqueísta. Bondade versus maldade são, talvez, a síntese da abertura. Enquanto, no capítulo anterior, o mal não era exatamente personificado – era o medo materializado e evocado por e em Pennywise –, aqui a situação se humaniza e revela uma crueldade real que facilmente ultrapassa a ficção. Se antes o pequeno Georgie fora massacrado de maneira brutal, a intenção dessa segunda parte é chocar também com a realidade.

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Esse início, por outro lado, faz com que tudo seja mais palpável: com um casal gay sendo acossado e espancado por um grupo claramente homofóbico, a situação atinge mais o além-filme do que o que se vê. E a produção, ciente de que tudo é mais efetivo como choque social, faz com que a primeira morte, assim como a de Georgie, seja algo bizarro. A diferença é que, no lugar de uma criança indefesa que ainda está desenvolvendo consciência sobre os medos, It: Capítulo Dois revela o temor de sair de casa que consome boa parte dos casais homossexuais. Mas não é somente isso: espancado, quase sem conseguir se movimentar, Adrian (interpretado pelo cineasta Xavier Dolan) ainda consegue forças para nadar até a margem de um rio após ser arremessado de cima da ponte... para, só então, uniformizar a questão. O medo estava sempre ali, oferecendo-lhe a mão. E o medo devora corpo e alma.

Mas o maior mérito dessa sequência passa longe de ser exatamente o medo. O roteiro de Gary Dauberman (dos três filmes solo da boneca Annabelle) – baseado em uma das obras mais aclamadas de Stephen King – é consciente o suficiente para investir não nos medos, mas nos traumas. Aquilo que, muitas vezes, causa um arrepio e nem se sabe o porquê toma conta das versões adultas dos integrantes do Clube dos Perdedores (ou dos Otários). Nesse sentido, a profundidade alcançada por Dauberman é reforçada pela direção de Andy Muschietti (mantido na função após o sucesso do anterior), que não demonstra pressa alguma em fazer ligações entre o presente adulto dos personagens e suas respectivas infâncias. Há certa reverência a essa questão, em uma condução que se arrasta, mas que acaba por ser óbvia dadas as dimensões do filme.

Nesse ponto, a edição de Jason Ballantine (infelizmente de Próxima Parada: Apocalipse) é cirúrgica ao unir passado e futuro dos personagens – algumas vezes misturando-os a ponto de quase ser imperceptíveis os saltos no tempo. Ao passo que Muschietti filmou, quando amedrontadas, as versões adultas geralmente se utilizando de enquadramentos contra-plongées (de baixo para cima) e as crianças em plongées (de cima para baixo), Ballantine consegue misturar essas decisões do diretor de maneira a realmente apequenar os protagonistas ou engrandecer cada um deles aos olhos do público. Isso remete, ainda, ao dito fato do desenvolvimento da consciência sobre os medos, que paralisa e apequena as ações quando se deixa de ser criança e pode mover a coragem com mais facilidade quando a infância ainda é presente na vida.

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Quero Ser Grande

É verdade que traumas perpetuados no passado infantil acabam por se fazerem presentes na idade adulta. Assim, como se não bastasse a natureza repressora da pequena Derry – que claramente afetou o grupo –, cada protagonista que provisoriamente esqueceu de seu trauma não o fez completamente. Se Beverly (Jessica Chastain) casou-se com um homem que reflete o autoritarismo do pai, Richie (Bill Hader) dá a impressão de esconder suas dores atrás de uma fachada de comediante grosseiro. Enquanto isso, Bill (James McAvoy) é um escritor e roteirista que tem como ponto fraco os finais: enterrando suas aflições na ficção em uma fuga constante de desfechos felizes. Mas o mais claro dessa relação temporal (inclusive imageticamente) é Eddie (James Ransone): casado com uma mulher que lembra, em muito, a sua mãe, ele vive uma vida de cuidados e receios e, para completar a simbologia, Molly Atkinson, a mesma atriz que interpretou a mãe (há 27 anos de acordo com o tempo do filme, claro) em It: A Coisa retorna para o papel de sua esposa.

Ainda assim, It: Capítulo Dois talvez perca muito do seu fôlego exatamente para essa relação dos adultos com suas infâncias. Pode, claro, ter um efeito positivo, visto que as atuações são, de certo modo, irretocáveis quando buscam copiar os trejeitos das crianças (Hader possivelmente se sai à frente dos demais inclusive) e o resgate da amizade é fundamental na absorção da história. O problema, nesse caso, é que, em alguns momentos, a impressão pode ser a de ver literalmente crianças nos corpos de adultos – como acontece com Josh (David Moscow e Tom Hanks) no excelente Quero Ser Grande (de Penny Marshall, 1988), que é uma comédia de fantasia (com pitadas de drama). Além disso, essa falta de verossimilhança da vida adulta tem força para causar algum afastamento do público na questão da identificação – sendo esta (a identificação) um dos pilares do cinema, especialmente ao se tratar de um filme que, sem dúvida, tem apelo popular.

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Em complemento, a atenção dada à versão adulta de Henry Bowers (Teach Grant) é tão caricata quanto desnecessária. A sensação é a de que Stephen King criou um vilão quase à altura de Pennywise para dar outras camadas à sua obra e Dauberman decidiu inserir o personagem no roteiro somente como um enxerto. Bowers acaba por se metamorfosear de um ser psiquiatricamente aterrorizante (possuído pela representação de todo medo) em um sujeito mal, sim, mas que no filme – e somente no filme porque é essa a questão – é tratado como uma espécie de bobo da corte (e, no caso, o palhaço nem é ele).

O que somos hoje

É interessante, de qualquer forma, perceber que a cidade de Derry pode ser uma microrrepresentação do mundo. Isso, além de explicar o fato de o medo permanecer centrado em um pequeno grupo (a minoria do Clube dos Perdedores), tudo parece uma alegoria social ao fato de que todas as outras pessoas ignoram a violência ao redor. Essa metáfora insere It: Capítulo Dois em uma verdade sofrida: a de que existe, bem perto de nós todos, pessoas sendo agredidas por serem o que são; colegas passando por dificuldades traumáticas que remontam aos seus passados; amigos precisando conversar para expurgar o que lhes afeta; família pedindo por atenção...

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No final das contas, restam nós mesmos, que, aos poucos, podemos estar nos tornando insensíveis demais, distantes demais, para compreender a força que tem os gestos de empatia. Especialmente quando essa compreensão começa olhando para nossa própria vida, em uma busca para entender o que fez nos tornamos o que somos hoje.