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Crítica | Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica fala sobre luto com o coração

Por| 06 de Março de 2020 às 12h20

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Disney/Pixar
Disney/Pixar

Alguns filmes se tornam marcos pela sua capacidade inventiva, por suas inovações, pela forma que decidem tocar em determinados temas. A quadrilogia Toy Story sempre foi por esse lado inventivo e inovador. Por mais que animações anteriores alcançassem universos delicados, como amadurecimento, vida e morte, ser ou não ser (vide O Rei Leão, 1994), depressão, ansiedade e até existencialismo (volta-se à Toy Story), parece que sempre existirão lacunas para a criatividade da Pixar preencher.

Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica, por esse lado, não traz nada de novo – e, no final das contas, isso acaba por se transformar em um elogio. Consciente de si, o roteiro de Dan Scanlon (de Universidade Monstros), Jason Headley (de A Bad Idea Gone Wrong) e Keith Bunin (de Amaldiçoado) é seguro o suficiente em ser uma espécie de lado inverso – e tão bonito quanto – de Viva: A Vida é uma Festa (de Lee Unkrich e Adrian Molina, 2017).

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

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Adiante

Scanlon, que também dirige a animação, tem, à primeira vista, uma aventura clássica em mãos, que traz uma limitação óbvia: a manutenção do tempo. “Só temos 24 horas para trazer o resto do papai de volta.”, diz Barley (originalmente na voz de Chris Pratt, mas Raphael Rossatto na dublagem brasileira). Essa perspectiva limitadora exige que a história construa caminhos que valham a pena, dada a previsibilidade (ou não) do final da estrada. É justamente nesses caminhos que Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica deixa de ser um exemplar banal, que busca tensão somente na premissa temporal, para se tornar algo muito além do cinema.

Nesse sentido, o filme de Scanlon demonstra interesse em fomentar o micro – o individual – por meio do seu macro: enquanto constrói a história de dois irmãos que partem em uma aventura com limite de tempo para encontrar a parte de cima do corpo do pai, o filme discute a importância da autoconfiança. O otimismo de Barley é motor para que Ian (Tom Holland em inglês e Wirley Contaifer na nossa dublagem) cresça e, detentor da magia, busque um mundo melhor para si (o micro) e para aqueles que passam por seu caminho.

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A jornada de autoconhecimento acaba por trazer reflexões típicas de uma animação Disney/Pixar – e que vão muito além dos aspectos mais íntimos. Se com WALL·E (de Andrew Stanton, 2008), por exemplo, a discussão sobre a degradação do planeta e sobre o que se faz consigo nesse processo é óbvia e necessária, aqui algumas das pérolas estão no âmbito familiar. Acertadamente, o importante para a animação é descobrir o que fazer com as pedras no caminho, porque elas sempre existirão. O título original, inclusive, ratifica o centro de tudo: Onward (algo como Adiante ou Para a Frente em tradução livre) traduz o espírito de Dois Irmãos: Uma Jornada Fantástica.

A via expressa

Mas, sem dúvida, as discussões vão muito além de frases de autoajuda como Siga em frente! ou Se você se esforçar vai conseguir. O roteiro sabe muito bem onde está pisando e demonstra entender que as teorias rasas sobre o comportamento humano são, justamente, rasas. Por isso, cada detalhe procura enfatizar que existem graus de dificuldade diferentes e que, antes da igualdade, a equidade é necessária. Barley e Ian são, assim, irmãos que buscam ver o pai, em uma alusão clara à silenciosa epidemia do abandono paterno – por mais que exista a delicadeza na exposição por se tratar de uma animação para todas as idades.

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Esse ponto possui até mesmo rimas um tanto quanto desconcertantes, como a Quimera que é, de repente, uma metáfora a como o mundo está acostumado a tratar mal o diferente... ou como a normalidade tenta desmerecer o complexo. Essa falta de adaptação aos poucos guia a animação em uma transformação: de aventura mágica à seriedade da discussão sobre o luto; do inverso de Viva: A Vida é uma Festa ao outro lado da mesma moeda; de como é complicado seguir caminhos mais difíceis e necessários quando os aparentemente mais fáceis estão à disposição: “Mas a via expressa é mais rápida...”

A única estrada possível

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É verdade que Dois Irmãos: Uma Jornada de Aventura pode não ter o peso emocional de Toy Story 3 (de Lee Unkrich, 2010) ou da animação que tem como palco central o Dia dos Mortos no México. Por mais mágico que seja, talvez não tenha a magia do Studio Ghibli. Mas, de todo modo, é um filme trabalhado com tanta energia, com um calor tão humano, que, mesmo não buscando ser inventivo ou inovador, é responsável e sincero. Essas qualidades, no final das contas, traduzem muitas das emoções da obra-prima Divertida Mente (de Pete Docter e Ronnie Del Carmen, 2015) e encontram o abraço quentinho da parte superior do pai de Barley e Ian bem dentro de nós.

Se falta cada vez mais humanidade à humanidade, os filmes da Disney/Pixar podem, muitas vezes, relembrar que, a longo prazo, o carinho, o respeito, a empatia e o amor fazem parte da única estrada possível para a nossa salvação. Do contrário, caminhamos com tempo contado para um fim que pode ser trágico. O luto mais pesado é o nosso próprio.