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Crítica | Black Mirror: Bandersnatch cumpre pelo menos uma de suas funções

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Filmes e programas interativos não são uma novidade. Há pesquisas e mais pesquisas dedicadas ao grau de imersão do espectador. O foco do Cinema Interativo está no aumento da experiência atingida pelo usuário, o que é estudado em um dos laboratórios mais conceituados do planeta, o MIT Media Lab, nos Estados Unidos. É interessante, partindo daí, a relação de tal laboratório com a ingressão das artes em um mundo que clama por imersão a fim de concentrar uma parcela considerável do público. “O futuro é vivido e não imaginado.”... Mas o que é esse futuro?

Por outro lado, a capacidade de assimilar um conteúdo por si só, de se concentrar em algo que oferece em troca uma possibilidade imersiva que depende muito mais do espectador, vai se perdendo. Três dimensões (o já velho e subutilizado 3D), cadeiras D-BOX e até quatro dimensões – que oferece fumaça e cheiro de pólvora (e cada vez mais) – são algumas das formas mais conhecidas e já comercializadas dentro de um processo que muito se diz como evolutivo.

Cuidado! Daqui em diante esta crítica pode conter spoilers!

O Labirinto e a sensação de controle

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Black Mirror: Bandersnatch, ao mesmo tempo em que segue essa linha, funciona como um teste em larguíssima escala de algo que já acontece com muita eficiência em jogos (Detroit: Become Human talvez seja, por enquanto, o ponto máximo desse formato) e já aconteceu em escala menor até mesmo quando a internet estava distante de ter o seu boom e os serviços de streaming eram um futuro de ficção científica. Programas como Você Decide (iniciado em 1992 e findado em 2000) buscavam uma interação com o público na tentativa de construir uma ligação mais intensa entre a história retratada e o espectador. Algo semelhante já ocorreu até mesmo em trabalhos de conclusão de curso, como por meio do filme O Labirinto (2010), de um grupo de estudantes de Rádio e TV da Universidade Estadual Paulista.

Claro que, sempre guardando as devidas proporções, Bandersnatch não é exatamente uma novidade. Trata-se de uma pseudorrevolução impulsionada com a publicidade da badalada série que serve como pano de fundo. Enquanto Black Mirror já virou adjetivo de futuro distópico ou provável (“Isso é tão Black Mirror!”), o filme interativo coloca em prática exatamente esse sentimento construído pela série. A partir disso, vive-se uma interação que vai de algumas decisões que parecem completamente irrelevantes a outras que tornam tudo mais macabro e sanguinolento (como matar o próprio pai).

E não é que as pequenas decisões sejam irrelevantes de fato: elas servem para arquitetar tudo o que prega a história – que diz sobre alguém estar no controle de uma simples coçada na orelha de Stefan Butler (Fionn Whitehead, de Dunkirk) a pular ou não de uma varanda para a morte certa. São justamente as pequenas decisões, inclusive, que fundamentam uma forma de interagir que vai muito além do decidir os passos do protagonista. Há, por meio delas, ações e diálogos que possibilitam uma sensação real de que se está obrigando o protagonista a fazer algo. Alguns desse trechos, que evitam acertadamente a quebra da quarta parede, dão a impressão de que Stefan está sendo assombrado por uma força maior, o que poderia construir, por si só, um clima de terror caso fosse a intenção da produção.

Mas passa longe. A direção de David Slade, do bom Menina Má.Com e de A Saga Crepúsculo: Eclipse, é condizente somente com o clima Black Mirror, mantendo sempre o foco nas decisões e deixando de lado, com muita esperteza, o roteiro bobo de Charlie Brooker sobre o moço que tem um jogo a ser programado e finalizado para uma grande empresa. Por outro lado, o formato de interação que coloca os espectadores como personagens tão controlados quanto o próprio Stefan pode ser perigoso: Ao mesmo tempo em que parece que as decisões tomadas modificam tudo o que se segue, há pontos em que elas (as decisões) levam apenas a um beco sem saída ou a decisões iguais com expressões diferentes (“Sim” e “Sim, cacete” por exemplo). Essas espécies de decisões que não são decisivas retiram a sensação de controle e provocam alguma frustração, especialmente quando da necessidade de se ver boa parte do que já foi visto.

Longe de ser libertinamente interativo

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Ainda, em alguns trechos, há somente uma única opção, revelando que se trata de uma lembrança do passado por meio da qual nada poderia ser feito naquele momento (visto que não se muda o que já passou). Em uma primeira vez à frente do filme, essa abordagem pode ser outra causadora de desencanto. A curiosidade, claro, provavelmente predomina e, quando surge a opção de sair para os créditos, a preferência é de continuar e acabar conhecendo os outros caminhos em uma profusão de retornos e investidas. Nesse sentido, ter conhecimento de como poderia ter sido passa a ser uma sensação bem Black Mirror.

Black Mirror: Bandersnatch é um primeiro passo nem tão primeiro assim. Funciona como uma ferramenta teste de massa, quase um viral, mas longe de ser libertinamente interativo. Para o MIT Media Lab, que, através da diretora de pesquisas científicas Glorianna Davenport, critica o cinema que oferece interatividade através de um número restrito de opções, há de se chegar a uma verdadeira interação. Junto à geração de novas tecnologias em aparatos sensoriais – como rastreamento de movimentos e reconhecimento de voz e gestos –, o cinema interativo, repleto até mesmo de ambientes construídos para tal e que muito lembra o episódio Versão de Testes da terceira temporada de Black Mirror, precisa imergir o espectador na narrativa fazendo com que ele se torne parte da história e interaja com os personagens virtuais.

E, aqui, Black Mirror: Bandersnatch chega perto. Sua interação é um protótipo, mas é construída de tal forma que tem o poder de fascinar os mais entregues à experiência e, pelo menos, inserir uma pulga atrás da orelha dos mais céticos. Deixar em xeque o controle exercido por quem assiste talvez seja a saída que Slade e sua equipe encontraram para o mea culpa de pouco poderem fazer ainda quanto a uma imersão real e muito mais intensa.

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Muito melhor

Como filme, Black Mirror: Bandersnatch trata-se de uma experiência extremamente válida. Distante de ser cinema e de ser um game da geração atual, ao menos funciona muito melhor como imersão do que a maioria esmagadora das conversões para 3D; é muito mais funcional do que as cadeiras D-BOX e é, sem dúvida, mais acessível do que as quatro dimensões. Mas, o que acaba por valer de verdade, aqui, são os questionamentos resultantes da experiência. E, quando uma peça de arte consegue sugerir tantos debates, sem dúvida ela cumpriu pelo menos uma de suas funções.