Crítica Anatomia de uma Queda | A morte como elemento de algo maior e mais grave
Por Felipe Demartini • Editado por Durval Ramos |
Anatomia de uma Queda começa com a morte de um pai, cujas primeiras testemunhas são seu filho cego e um cachorro; um ensejo digno de grandes mistérios de assassinato e tribunal. Logo, porém, percebemos que o longa de Justine Triet (Sibyl) é sobre algo muito maior do que isso, a ponto de o suposto crime, em si, ficar até em segundo plano.
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São poucos os aspectos da produção que não assumem mais de um significado, aliás. Sendo assim, não dá para o classificar como suspense, trama jurídica ou até mesmo um drama por si só. Ele pode ser tudo ao mesmo tempo, mas também nada disso a cada nova cena. E é assim que o longa brilha, sacramentando sua posição como um dos melhores do ano.
50 centavos, um cachorro e muito mais
Nada é o que parece em Anatomia de uma Queda, mais do que isso, tudo é absolutamente complexo. Começamos com uma entrevista da personagem principal, Sandra (Sandra Hüller, em uma das melhores atuações do ano) e seguimos com o garoto Daniel (Milo Machado Graner, também formidável) por um passeio corriqueiro com o cachorro Snoop (Messi, igualmente incrível), no que parece uma manhã normal cuja calma precede a tempestade.
O barulho de obra misturado a uma versão quase surreal do sucesso de 50 Cent, interpretado pelo conjunto alemão Bacao Rhythm & Steel Band, é prelúdio do caos. A morte de Samuel (Samuel Theis) é um momento que conta muito do que precisamos saber sobre estas pessoas, mas o espectador, claro, só percebe isso depois de ser fisgado pela possível tragédia, assassinato ou outra coisa no meio disso.
É exatamente o lugar em que Triet quer nos colocar, e seguimos por esse caminho quase sem perceber. Na medida em que Sandra é acusada de um crime que pode ou não ter cometido, começamos também a buscar indícios do bem e do mal. Principalmente quando percebemos, pouco a pouco, que as pessoas atrás da tela apresentam conflitos, vontades e desígnios complexos, conflitantes e absolutamente humanos. Algo que, na verdade, só aumenta nosso envolvimento com a história.
Culpada ou inocente? Importa?
Como algumas das outras seleções do Oscar 2024, Anatomia de uma Queda também é um filme que usa situações dramáticas para contar uma história próxima dos espectadores. Todos são seres humanos que, agora, terão suas vidas expostas em um tribunal, diante do júri e da imprensa local, em um caso daqueles que assumem tons espetaculosos, como temos de tempos em tempos no Brasil.
Um casamento em frangalhos e uma família com abismos entre seus membros acabam servindo como argumento para um sistema judiciário altamente parcial e machista. O tribunal parece tentar mais confirmar uma visão pré-concebida do que representar parte do processo legal, enquanto quem assiste briga, concorda ou se vê provocado pelo que acontece no fórum.
Temos longos diálogos que levam ao pico ou momentos tirados do contexto em um julgamento midiático e altamente parcial. Ao mesmo tempo, Anatomia de uma Queda usa longas cenas de câmera parada, focos nos olhos, trilha sonora pontual e uma sensação de quase placidez para falar sobre absurdos e traumas. É um contraste que incomoda e impulsiona a trama, mesmo nos momentos mais lentos.
Atuações potentes do trio principal ajudam a levar o longa adiante nesses platôs, que não devem ser confundidos com barrigas. Sandra, Daniel e Snoop, aliás, entregam alguns dos melhores trabalhos do ano e o cachorro poderia muito bem levar uma estatueta para a casinha. Mãe e filho, principalmente, fazem o espectador querer assumir uma posição de investigador e jurado, apenas para, no momento seguinte, perceber que há muito mais em jogo.
O ponto principal de Anatomia de uma Queda, afinal, é a armadilha mordaz criada pelo argumento de Triet. Para muita gente, o filme pode até mesmo terminar com mais perguntas do que começou. Caso queira assistir de novo, faça isso, pois uma segunda sessão que fará com que a produção brilhe ainda mais em suas sutilezas.
Vale a pena ver Anatomia de uma Queda?
Em meio à popularidade do true crime, Anatomia de uma Queda apresenta o julgamento de um assassinato como contraponto. Por trás da morte, existe gente de verdade e desígnios igualmente comuns e complexos. Em duas horas e meia de projeção, nada é absoluto como a batida da música ou do martelo de uma juíza sobre a ruína clara de um casal, por mais que tentem fazer parecer que sim.
Uma das poucas certezas que o novo longa de Justine Triet nos deixa é que ele será assunto de rodas de conversa, discussões acaloradas nas redes sociais e até teses de cinema. Acima de conclusões sobre o que causou a morte de Samuel ou a culpa ou não de Sandra, estão discursos que podem pegar de forma diferente para cada espectador. O caráter magistral do filme, porém, é indiscutível e sua complexidade narrativa e emocional mais do que justifica sua presença nas listas de melhores do ano.
Anatomia de uma Queda estreia nos cinemas brasileiros em 22 de fevereiro.