Cem Anos de Solidão já ganhou uma adaptação japonesa que você não conhecia
Por Durval Ramos |
A série da Netflix de Cem Anos de Solidão não é a primeira adaptação do clássico livro do autor colombiano Gabriel García Márquez. Muito anos antes de a saga dos Buendía chegar ao streaming, essa história de realismo mágico, maldições familiares e amores proibidos ganhou as telas no Japão.
O filme Saraba Hakobune (algo como A Arca da Despedida, em uma tradução livre) leva essa histórica tipicamente latino-americana para o país oriental, mas mantém todos os elementos que marcam o livro. Lançado em 1984, dois anos após Márquez receber o Nobel de Literatura, o longa contou com o apoio do próprio escritor como um de seus roteiristas.
Dirigido por Shuji Terayama (Os Frutos da Paixão), o filme é o último trabalho do cineasta, que morreu alguns meses antes da estreia do longa. E a escolha por Cem Anos de Solidão não foi tão ao acaso ou na carona do sucesso de Márquez após o prêmio internacional. Os trabalhos anteriores do diretor já brincavam com o imaginário surreal, então ele apenas aplicou essa experiência na adaptação do clássico.
Saraba Hakobune chegou a fazer relativo sucesso fora do Japão, chegando a ser exibido no Festival de Cinema de Cannes em 1985. A adaptação ainda trazia grandes nomes do cinema japonês, como Mayumi Ogawa (Shin Godzilla) e Tsutomu Yamazaki (Kagemusha: A Sombra de um Samurai).
Como é o Cem Anos de Solidão japonês?
Apesar de tirar a história da América Latina e levar para o Japão, a história de Saraba Hakobune é bem parecida com aquela que os leitores conhecem de Cem Anos de Solidão. A cidade de Macondo, portanto, deixa de ser o cenário e a trama toda é desenvolvida em uma ilha na região de Okinawa, uma área mais isolada ao sul do território japonês.
É aí que conhecemos a saga de Sutekichi Tokito (Tsutomu Yamazaki) e Sue Tokito (Mayumi Ogawa), dois primos que se casam mesmo contra as regras da ilha. O local é comandado pelo ancião da própria família Tokito, que obriga Sue a usar um cinto de castidade para que ela não desrespeite as tradições. E é quando, cansado de toda essa humilhação, Sutekichi decide matar o patriarca e poder consumar seu amor.
Só que, justamente por ser inspirado em Cem Anos de Solidão, há algumas peculiaridades nessa novela toda que trazem esse tempero latino. O realismo mágico de Márquez está presente em pequenos elementos, como no fato de a família Tokito comandar a ilha de um modo bem peculiar: dominando o tempo.
No vilarejo em que o filme se passa, há um único relógio que fica sob o comando desse patriarca. E é ele quem dita os rumos da vila.
Além de ser uma alegoria bem interessante para essa ideia de como somos todos escravos do tempo, o uso do relógio a partir dessa proposta até um tanto exagerada serve também para trazer alguns debates um pouco mais filosóficos sobre vida, morte e memória.
Levando em conta que o diretor Shuji Terayama morreu aos 47 anos vítima de uma nefrite, uma inflamação dos rins que o acompanhou ao longo de toda a vida, o papel desse relógio como uma ferramenta de dominação é algo que ganha um peso muito maior na obra.
E é nessa relação com o tempo que o enredo faz sua grande conexão com a ideia de Cem Anos de Solidão. Em determinado ponto do enredo, o tal relógio é destruído e o tempo deixa de passar na ilha, fazendo com que aquele vilarejo fique congelado na História. Com isso, seus habitantes começam a deixar o lugar um a um em busca de cidades onde o progresso chegou e eles podem ter vidas mais prósperas.
Tanto que o filme acaba cem anos depois da trama principal, os antigos habitantes que foram embora se reúnem para uma foto no local e a última cena é justamente um quadro melancólico desse encontro em que a mágica de outrora não existe mais.
Onde assistir ao Cem Anos de Solidão japonês?
Como dito, o livro Cem Anos de Solidão é um dos símbolos desse realismo mágico da América Latina. O estilo mescla elementos fantásticos dentro de situações do cotidiano, criando essa aura absurda diante de coisas do dia a dia. E Saraba Hakobune, a adaptação japonesa da obra, traz isso em vários elementos.
Além do já citado relógio que literalmente controla o tempo na ilha, há outras pequenas loucuras aqui e ali que dão ao filme um tom surreal. Do protagonista que vira amigo do fantasma do homem que matou ao próprio fato de que apenas ele envelhece enquanto sua esposa segue inalterada, há várias dessas pitadas fantásticas que unem as duas obras.
Atualmente, Saraba Hakobune não está disponível em nenhum streaming. Contudo, é possível assistir ao filme na íntegra no Internet Archive, site dedicado à preservação de obras e conteúdos na rede. O único porém é que ele possui apenas legendas em inglês.