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Crítica | Série Dracula dá novo vigor à história clássica de Bram Stoker

Por| 15 de Janeiro de 2020 às 19h30

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Netflix
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A figura do vampiro, de modo geral, costuma trazer consigo questionamentos sobre a mortalidade e as consequências de uma vida potencialmente eterna. A partir disso, variam os estereótipos de personagens, que têm parte considerável de sua gama muito bem representados em Entrevista com o Vampiro (1994, Neil Jordan): há quem não goste da sua condição de imortal e há quem abrace a vida de vampiro e, portanto, parece perder a humanidade e se aproximar da figura de uma besta.

Drácula, por sua vez, teve e continua tendo o seu próprio universo inúmeras vezes recriado nas artes. Nessas obras, alguns fatos são recorrentes na história desse vampiro em particular: um amor que dura mais anos que a vida de qualquer mortal, estacas, servos do Conde, crucifixos, Mina, Lucy, Van Helsing... A ideia de imortalidade traz consigo um dos maiores castigos de ser um vampiro: ver sumirem no tempo todos aqueles que você ama. Reencontrar as reencarnações ou futuras gerações dessas pessoas, não alivia, a não ser como paliativo, essa dor de viver anos talvez em completa solidão.

A série original Netflix revisita Drácula e toda a mitologia dos vampiros com declarada paixão pelo clássico e, mesmo quando decide ressignificar partes canônicas, faz isso com um grande respeito e na medida certa. Infelizmente, a série tem problemas técnicos (sejam orçamentários ou da equipe) que podem afastar os espectadores mais impacientes: é preciso superar o péssimo CGI que vemos logo nos primeiros minutos e compreender o clima de clássicos de horror dos anos 1930 para acessar um roteiro que tem uma boa história para nos contar.

Atenção! A partir daqui o texto pode conter spoilers.

Paciência

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Nem sempre uma obra pode ser o seu melhor: audiovisual envolve muito mais do que uma boa ideia e vontade de fazer, estando também submetida a questões financeiras e/ou comerciais. É muito comum que bons filmes e séries acabem não sendo assistidos justamente porque sua aparência deixa a desejar. Mesmo que a primeira impressão seja bastante persuasiva, algumas obras merecem nossa persistência e confiança. Esse é o caso de Drácula.

Os efeitos visuais digitais são realmente bastante rudimentares e às vezes parece até que estamos diante de um jogo de um console mais ou menos antigo. O primeiro contato com o Drácula decrépito pode ser risível dada a voz que Claes Bang cria para o personagem. Jonathan, interpretado por John Heffernan, soa bastante caricato. Mas, acima de tudo, temos a direção que evoca uma nostalgia dos tempos do cinema em tons de cinza, mas que já não casa muito com a pitada moderninha desse novo Drácula, mesmo quando ele ainda está temporalmente localizado no século XIX.

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Apesar disso, a persistência do espectador será recompensada ainda no primeiro episódio, quando Drácula assume sua forma mais jovem e, sobretudo, com a inserção da personagem de Dolly Wells, a Irmã Agatha.

"The legend gets some fresh blood"

A divulgação da série trouxe a frase “The legend gets some fresh blood” ("A lenda ganha um pouco de sangue fresco", em tradução livre), o que é uma proposta bastante arriscada. Não é fácil mexer com uma figura icônica como Drácula, que tem diversos pontos da sua história bastante sedimentadso no imaginário dos espectadores, sem mexer em um vespeiro de fãs. Ainda assim, Drácula assume o risco.

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Dentre tudo que se pode entender como sangue fresco na série, Irmã Agatha é, provavelmente, uma personagem que, se não supera o próprio personagem-título, equipara-se a ele. É uma inserção bastante crível de uma mulher a frente de seu tempo e uma forma sagaz de inserir uma personagem feminina em um espaço aparentemente infértil para isso. Irmã Agatha é algo que existiu: algumas mulheres (aquelas de famílias abastadas) tinham a opção de trocar o casamento por uma vida dedicada a Deus. Sendo uma personagem possível, o desenvolvimento dela como uma mulher incrivelmente crítica e inteligente é um desdobramento que, além de aceitável, torna a série ainda mais profunda e interessante. Não somente Drácula ganha uma oposição feminina, como esse feminino trata de lidar ao mesmo tempo com ciência e religião, fazendo de ambos os personagens uma dupla perfeita de gato e rato que no fundo nutrem sentimentos entre si, tal qual Tom e Jerry.

Apesar de complexa e bem-sucedida, a inserção da personagem de Agatha nos dois primeiros episódios pode soar muito como uma questão de representatividade feminina, o que de fato acontece. No entanto, ela se torna ainda mais que isso quando retorna (como si mesma e como Zoe Helsing) no terceiro episódio. A força de ambas as van Helsing é equiparável ao poder do Drácula e não é gratuito o jogo de xadrez que parece indicar um vencedor distinto a cada jogada.

Mudanças

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Mark Gatiss e Steven Moffat, criadores de Sherlock e produtores de Doctor Who, conseguem criar e desmistificar as características do Drácula de uma forma tão original e arriscada, quanto igualmente profunda.

A ideia de um vampiro que rejeita os símbolos católicos e que não pode ser exposto à luz do sol é icônica, mas ao mesmo tempo gera uma série de previsibilidades no roteiro: já sabemos como o monstro deverá morrer, só precisamos esperar para ver qual será o método utilizado. No terceiro episódio, no entanto, Drácula é transformado em um ser psicologicamente complexo e vulnerável. As lendas são consequências de hábitos adquiridos por ele, como quem desenvolve alguma síndrome.

O Drácula de Claes Bang, embora soe cartunesco ou saído de um filme de horror italiano, é incrivelmente carismático. Ele é mau, mata pessoas inocentes e, mesmo assim, é um personagem pelo qual torcemos, na mesma intensidade com a qual torcemos por Agatha e é por isso que eles formam uma dupla cujo embate é digno de ser acompanhado.

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Se o espectador é fã de filmes de terror, ainda é possível divertir-se procurando as referências que são enxertadas com primazia, como o papel de parede do quarto de Jack (Matthew Beard) que faz uma referência em tons frios ao carpete do hotel de O Iluminado (1980. Stanley Kubrick).

Com Drácula, a Netflix traz um novo vigor para seu catálogo: um terror em moldes antigos, mas com uma esperteza bastante contemporânea, uma fórmula pouco ou nada explorada nos títulos do gênero que a plataforma dispõe para seus usuários. A química entre os personagens é a grande isca que deve ser abocanhada enquanto faz-se um esforço para ignorar os problemas técnicos. O final do terceiro episódio é o prêmio daqueles que persistiram.