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Cientistas conseguem transformar sangue tipo A em doador universal

Por| 11 de Junho de 2019 às 20h30

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Cientistas conseguem transformar sangue tipo A em doador universal
Cientistas conseguem transformar sangue tipo A em doador universal

A compatibilidade sanguínea é um fator determinante em procedimentos médicos de transfusão de sangue, diálise e transplante de órgãos. Ao definir a tipagem, estamos cientificamente categorizados dentro de grupos específicos, sendo que cada um possui em seu plasma uma série de anticorpos característicos. Isso significa, por ter um conjunto diferente de anticorpos e características celulares em seu sangue, um doador tipo B não é compatível com um receptor tipo A e vice-versa. E a preocupação em torno disso é clara: a menos que um paciente receba sangue O (ou compatível com o seu), um procedimento de transfusão pode levar à ruptura de suas hemácias, resultando em morte.

Em um artigo publicado na revista Nature Microbiology na última segunda-feira (10), cientistas da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, conseguiram realizar um feito inovador na microbiologia e fisiologia: converter, utilizando enzimas naturais do intestino humano, o sangue tipo A em doador universal — ou seja, é possível fazer com que o sangue A tenha as mesmas características do sangue tipo O.

A grande sacada da pesquisa se baseia no fato de que células sanguíneas do tipo O não possuem nenhum tipo de açúcar em suas superfícies, o que confere a elas a característica de compatibilidade universal. Independente de fator Rh, tais açúcares, geralmente carboidratos como a galactose, estão diretamente ligados à superfície de células de sangues A, B e AB. Por isso é tão importante ter um bom aporte de bolsas de sangue O nos hemocentros para situações de emergência, pois quando o tipo sanguíneo do paciente não é identificado no momento de um acidente ou necessidade de intervenção, as chances de sucesso na transfusão são reais.

A ideia principal nessa pesquisa foi transformar sangue A, o segundo tipo mais comum entre humanos, em um material compatível com todas as outras tipagens sanguíneas nas salas de emergência, já que os hemocentros sofrem diariamente com a falta de estoque de bolsas com sangue, principalmente do tipo O. Para isso, a tentativa foi de remover os carboidratos (açúcares) incompatíveis das hemácias e torná-las tão neutras quanto as de um sangue O, o famoso doador universal. Mas há um porém: as técnicas atuais de conversão sanguínea possuem um custo elevadíssimo que inviabiliza sua aplicação.

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Graças a um tipo de enzima presente em bactérias naturais do nosso intestino, os cientistas conseguiram encontrar uma luz no fim do túnel. Foram anos trabalhando em busca de uma enzima com ampla disponibilidade e capaz de quebrar os açúcares das células sanguíneas menos compatíveis — e graças à nossa flora intestinal, os pesquisadores descobriram a resposta na digestão de algumas bactérias presentes ali. O que acontece é que tais bactérias digerem mucinas (açúcares e proteínas) do trato intestinal, e os carboidratos presentes nessas substâncias são bastante semelhantes aos encontrados em células de sangue tipo A.

Para colocar o experimento em prática, a equipe precisou isolar o DNA bacteriano de uma amostra de fezes humanas. Assim, tecnicamente, seria possível extair os genes que codificam as enzimas responsáveis pela quebra das mucinas. Com uma técnica de engenharia genética, os pesquisadores conseguiram, então, cortar o fragmento de DNA para reproduzi-lo em cópias in vitro de bactérias Escherichia coli. O próximo passo foi observar a digestão dessas bactérias em laboratório: seriam elas capazes de digerir os açúcares das mucinas, a ponto de quebrá-los por completo? Caso positivo, seria mais de meio caminho andado para a eliminação dos açúcares das células sanguíneas do tipo A.

Após várias tentativas, os cientistas descobriram que as enzimas são oriundas de outra bactéria intestinal, chamada Flavonifractor plautiique. Duas das enzimas resultantes do processo de digestão conseguiram quebrar eficientemente os açúcares das células do sangue tipo A, desde que trabalhassem simultaneamente. Esse processo de digestão de carboidratos in vitro foi acompanhado com a ajuda de marcadores, substâncias que, ao serem vistas em microscopia, colorem determinadas estruturas celulares e mostram ao cientista o que está acontecendo e qual o caminho percorrido em determinadas reações. O par de enzimas também foi capaz de quebrar os açúcares ofensivos ligados às células do sangue tipo A‚ mas não do tipo B.

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Como o sangue tipo A representa praticamente 30% de todos os tipos existentes no mundo, ao aliar a oferta de sangue A com a de sangue O, o aporte nos hemocentros pode, potencialmente, dobrar de tamanho. A técnica, segundo os pesquisadores, não é tão dispendiosa: ela usa baixas cargas enzimais em um mecanismo único, poupando tempo e recursos. E os resultados são bastante promissores no dia a dia das emergências.

"A altíssima atividade e especificidade dessas enzimas, tanto nas soluções isoladas quanto no sangue, faz com que sejam candidatas extremamente promissoras na implementação [de técnicas] nas rotinas automatizadas já existentes [em laboratórios] para coleta, processamento e armazenamento sanguíneo, com grandes implicações na flexibilização de nossos suprimentos de sangue e possíveis aplicações no transplante de órgãos", diz o estudo.

Apesar do achado, ainda é cedo para determinar se a técnica vai chegar nos hospitais ou hemocentros no curto prazo. Como este foi o primeiro estudo capaz de encontrar tais evidências, novas pesquisas são necessárias para lapidar o processo e torná-lo clinicamente viável, a ponto de tornar a conversão da tipagem sanguínea rapida e tecnicamente funcional em larga escala.

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Fonte: Nature Microbiology