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The Boys no Amazon Prime Video não deve usar o final das HQs por estes motivos

Por| 06 de Fevereiro de 2022 às 11h00

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Dynamite Comics
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Não precisa gostar de super-heróis para saber da existência de The Boys, polêmica e violenta série do Amazon Prime Video que satiriza os superseres de colantes coloridos da mitologia moderna. Aliás, se você detesta os personagens da DC Comics, em especial, provavelmente vai gostar da atração, já que a adaptação dos quadrinhos de Garth Ennis e Darick Robertson é uma paródia junk da Liga da Justiça.

Antes de chegar aos principais motivos que impedem a versão para o streaming de ter o mesmo final, é preciso contextualizar um pouco a época do próprio lançamento da revista para compreender o rolê todo.

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Os anos 1990 podem ser considerados a época de grande decadência dos super-heróis. Com fórmulas desgastadas, falta de criatividade e cronologia difícil de seguir, o mercado dominado pela Marvel Comics e pela DC Comics via seu público envelhecer sem se renovar; e, a cada ano, mesmo os leitores mais fieis estavam migrando para outros gêneros dos quadrinhos.

Os mangás, o mercado independente e as histórias adultas passaram a ganhar muito mais destaque, já que eram nas publicações desses nichos que aconteciam as ideias mais efervescentes da época. Vale destacar que era um período em que a internet ainda estava engatinhando, as adaptações de franquias populares das HQs para a TV e para o cinema eram risíveis e não traziam muita fidelidade aos principais conceitos das obras originais; e os modelos de negócios eram limitados e bastante saturados para a chegada dos anos 2000.

ATENÇÃO: os textos e imagens abaixo podem trazer sugestões perturbadoras de sexo e violência que podem deixar alguns leitores desconfortáveis.

The Boys apareceu com ideias extremas justamente durante a revitalização dos super-heróis

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Como dito acima, as alas alternativas do mercado ganharam muito espaço na banca durante os anos 1990. Isso porque, embora a arte das HQs de super-heróis tenham evoluído bastante, havia uma crise de ideias entre os roteiristas estadunidenses.

Os textos pobres em projetos apelativos eram usados em propostas parecidas com o que conhecemos atualmente por clickbaits, matando e sexualizando personagens como Superman e Mulher-Maravilha. O setor pagava o preço de empregar muitos escritores que apenas reproduziam, de forma bem medíocre, um mix datado dos gibis que eles leram, em uma linguagem que ainda buscava mais respeito na cultura pop.

Justamente em um momento em que crítica e público estavam prontos para consumir quadrinhos mais maduros e complexos, o setor de super-heróis regredia e oferecia combustível para que muitos ainda tratassem essas publicações como "coisa de criança" ou para adolescentes revoltados.

Nos anos 1990, vimos centenas de mortes de personagens em tramas que já evocavam continuidade retroativa (os famosos retcons) em conclusões preguiçosas, que pouco serviço prestavam para a evolução da Nona Arte. Veja bem, foi nesse período que a Marvel Entertainment se sentiu em um beco sem muitas opções: ou o mercado apostava em soluções a curto prazo com material menos cerebral e quase totalmente dispensável para franquias em declínio que precisavam de um passo adiante; ou buscava em outros ares a inspiração de que tanto precisavam. E foi assim que os direitos autorais de personagens importantes do grupo foram vendidos com cláusulas absurdas para estúdios como a Fox e a Sony, como forma de lidar com o processo de falência em que passava.

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Os títulos japoneses invadiram as prateleiras norte-americanas. Os artistas independentes conseguiam oferecer ideias muito mais interessantes. E a DC Comics, que já vinha trazendo os autores britânicos para o crescente selo adulto Vertigo, decidiu apostar em novos talentos que traziam conceitos e tramas ainda mais excitantes, desafiadoras e provocativas. Nomes como Warren Ellis, Grant Morrison e Garth Ennis floresciam no caminho pavimentado por Alan Moore e Neil Gaiman.

Garth Ennis, que é quem devemos destacar aqui para falar sobre o tema que abordamos nesta matéria, teve uma ascensão meteórica na revista de John Constantine, Hellblazer; e tudo o que ele tocava depois disso parecia agradar os leitores que estavam cansados da mesma ladainha sem criatividade nos títulos de super-heróis — Preacher e a debochadíssima Hitman se tornaram sucessos instantâneos.

Vale destacar que o zeitgeist também ajudava: nos anos 1990 havia uma crescente preocupação com o fim do mundo na virada dos anos 2000; e diretores de cinema que usavam a ultraviolência banalizada como ferramenta de choque e humor sombrio eram muito prestigiados — entre os quais se destacavam Quentin Tarantino e Guy Ritchie.

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Garth Ennis, que era considerado uma mistura de Tarantino com Ritchie nos quadrinhos, expandiu suas ideias malucas e transgressoras para títulos mais populares, como Justiceiro. Mas, na virada dos anos 2000, Ennis parecia pouco inspirado. Suas tramas e personagens pareciam soluções formulaicas, vindas da mente de um roteirista cansado que sentia a pressão de assumir muitos títulos em um mercado em plena mudança.

E The Boys, que se encaixa até melhor nos tempos atuais, vinha para destruir o conceito de super-herói justamente quando a Marvel e a DC tinham encontrado roteiristas capazes de revitalizar esse mercado, com obras que realmente conseguiram atualizar os elementos básicos do heroísmo das eras de Ouro e de Prata dos quadrinhos em propostas que dialogavam melhor com uma nova geração de leitores sem afastar os veteranos.

Ou seja, era muito mais necessário lembrar por que o Superman ou Homem-Aranha são tão queridos, do que diminuir a importância deles com críticas ácidas que destacavam tudo o que os deixaram desatualizados, ofuscando suas qualidades. A proposta não era de questionar as coisas que não faziam mais sentido para homenagear o que os tornaram tão especiais; e sim de destruir — o que é bem diferente de descontruir — o super-herói.

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Os Vingadores, por exemplo, que passaram os anos 1990 patinando em HQs pouco inspiradas, vinham se tornando o carro-chefe da Marvel nos anos 2000, com tramas eletrizantes e personagens clássicos reposicionados de uma maneira muito mais adequada ao público e a cultura da época — muito do que vemos nos filmes e nas séries da Marvel e da DC se inspira justamente nas ideias usadas pelas editoras para revigorar suas franquias entre meados de 2000 e a virada dos anos 2010.

A queda de Ennis e o humor que beirava o mau gosto em The Boys

Embora todos os personagens durões com trajetórias, cenários e coadjuvantes tenham se repetido na maioria de seus projetos no começo dos anos 2000, havia uma grande chance de ele voltar a brilhar. Jim Lee, desenhista de sucesso que alavancou os títulos dos X-Men em meados dos 1990, decidiu voltar para as grandes editoras e levou seu estúdio Wildstorm para a DC Comics.

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Como o selo Wildstorm já vinha publicando material que experimentava o mainstream dos super-heróis com propostas mais adultas, a exemplo de Authority e Planetary, Jim Lee acreditou que era o momento de “recuperar” Ennis com uma nova série, que tinha como objetivo descontruir os super-heróis em uma realidade muito mais violenta do que qualquer um já tinha visto em um gibi do gênero.

Assim, nasceu The Boys, em 2006. Só que… Ennis parecia estar ainda preso nos anos 1990. Ele apostou em ideias muito mais transgressoras e até obscenas. Seu sarcasmo característico e suas ideias interessantes, com diálogos bem construídos e enredos que fisgavam os leitores com mais do mesmo em perspectivas realistas, estavam ali. Mas…

…muitas das cenas de ação e comportamentos dos personagens traziam ideias que estavam muito mais perto de piadas de mau gosto e de ofensas gratuitas do que os provocativos conceitos do passado. Orgia, depravação, uso recorrente de drogas, incesto, violência extrema e outros temas para lá de polêmicos não estavam sendo mais usados como ferramentas espertas em críticas corrosivas; ou para construir momentos de anticlímax e cliffhangers sedutores.

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Na verdade, o choque gratuito parecia ser o maior motivo de The Boys existir, o que ofuscava até mesmo muitas de suas ideias mais interessantes para a revista. E aí aconteceu algo que todos acreditavam que ocorreria muito mais cedo. A Wildstorm havia sido incorporada pela DC Comics, e muita gente se perguntava o tempo todo como é que a DC mantinha o título mensal até a edição número seis.  A série foi banida de DC, claro, pois parodia justamente os maiores ícones da editora. A Dynamite Entertainment, então, assumiu a publicação.

Os ataques de Ennis ao modelo perfeito dos super-heróis era agressivo e divertido, mas em grande parte do tempo havia um tom que parecia estar mais interessado em destruir um gênero com desrespeito do que questionar fórmulas desgastadas para leitores do novo milênio.

Série de TV de The Boys “corrigiu” a ideia original de Ennis

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Os quadrinhos que ganharam começo, meio e fim entre outubro de 2006 e novembro de 2012 sempre estiveram na mira dos produtores Evan Goldberg e Seth Rogen. Os produtores, que sempre curtiram Ennis e suas ideias explosivas, já tinham feito trabalhos razoáveis com outra franquia criada pelo escritor irlandês nos quadrinhos, Preacher, conseguiram sinal verde da Amazon para produzir uma adaptação.

Mesmo com o medo de um fracasso devido ao tom polêmico e destinado ao público adulto — o que limita bastante o alcance de audiência —, a Amazon decidiu apostar na adaptação porque ela precisava de uma série headliner para competir com powerhouses como Stranger Things e The Mandalorian, na Netflix e no Disney+, respectivamente.

O que ninguém esperava é que, com um elenco bastante entrosado e ajustado para cada personagem de The Boys e um roteiro com provocações que funcionam muito melhor nos anos 2010 e 2020, pudesse deixar aquele “odor” de mau-gosto e ofensas gratuitas de Ennis e se encaixar irônico e provocativo sem ser tão apelativo. A produção conseguiu encaixar bem os temas da revista no momento em que o mundo vive. Quando a revista foi lançada, em 2006, já tínhamos uma internet mais avançada, mas as redes sociais, o monitoramento constante, os algoritmos de busca, entre outras coisas encravadas em nosso atual cotidiano, ainda não eram tão relevantes.

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E muito desse sucesso vem do fato de os atores e a dramatização de várias ideias malucas terem agregado mais alma e coração. Um dos exemplos é a trajetória de um dos protagonistas, o Billy Açougueiro. Nos quadrinhos seus planos eram de, basicamente, destruir todos os integrantes do grupo de Supes chamado Os Sete — em especial, o Capitão Pátria, que é uma clara alusão ao Superman e foi o responsável pela morte da esposa de Billy, Becca.

Na TV, Billy se tornou uma espécie de “anti-herói do faroeste”, que se mostra um companheiro leal de sua equipe e tem uma interessante progressão de sentimentos com o novato Hughie, mesmo com seus ímpetos assassinos. Na atração do streaming, ele estabelece um código de honra próprio em um roteiro que usa a violência, o choque, a depravação, as sugestões de incesto, o uso de drogas, e outros temas politicamente incorretos, em ferramentas de narrativa que estão ali para fazer o que deveriam ter feito nas HQs desde o começo: mostrar como os protagonistas podem progredir para caminhos bem mais dignos do que os que foram pintados na Nona Arte, sem deixar para trás o humor sombrio característico da obra original.

Ok, agora sim podemos falar sobre o final de The Boys que não pode ser reproduzido na TV

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Atenção, a partir daqui há alguns spoilers da primeira e segunda temporada de The Boys

Resumindo a treta final de The Boys nas HQs, a violência e falta de sensibilidade com a vida de seus inimigos, e até de inocentes, não tem nada a ver com o que vemos na progressão do Billy na pele de Karl Urban. Por exemplo, esta versão do Billy acaba criando uma relação de amor e ódio com Hughie que se torna muito mais interessante na evolução de pessoas que inicialmente são rivais, mas ao longo da trama passam a se respeitar.

Além disso, este Billy cria um conflito com o Capitão Pátria que vai além da obsessão pela destruição dos Sete. Billy tem que aceitar e proteger um filho que foi concebido a partir do estupro do análogo de Superman em sua esposa. E essa interação deixou tudo mais complexo e interessante. E a motivação dele muda sua obsessão por vingança e seu senso de justiça um tanto quando distorcido para ideias e comportamentos mais verossímeis na jornada criada para o streaming. Veja bem, no encerramento do enredo original, Billy tem planos para assassinar milhões de inocentes com a “justificativa” de manter a ordem destruindo os Sete.

Outra coisa que não tem nada a ver com o caminho trilhado por The Boys nos quadrinhos, é o fato de, na TV, o grupo de humanos ter uma defesa sobrehumana contra os Supes, a partir do uso da droga Compound V, que foi basicamente o que deu os poderes para os “super-heróis”. E mais: no desenvolvimento desse plano, Billy mata seus colegas de equipe. A exceção é Hughie, que consegue sobreviver e mata o próprio Billy.

Acrescente aí o fato de Herogasm, uma minissérie derivada dos quadrinhos de The Boys, ter tocado no assunto 11 de Setembro de uma forma que muitos estadunidenses talvez se sintam ofendidos — especialmente pelo fato de ser usado como uma ferramenta de narrativa bastante dispensável.

Ou seja, essas decisões para personagens-chave na adaptação de certa forma vêm para “corrigir” a violência gratuita que não deu muito certo na investida inicial de Ennis. E, pelo menos até agora, soam muito mais interessantes, divertidas e curiosas do que a proposta original.

A terceira temporada de The Boys chega ao Amazon Prime Video no próximo dia 3 de junho e deve misturar elementos da minissérie em quadrinhos derivada Herogasm com a chegada de um grupo análogo aos Vingadores à cidade de Vought.