Nos EUA, câmeras da polícia geram preocupações com privacidade em protestos
Por Rafael Arbulu |
As câmeras acopladas aos uniformes dos policiais nos Estados Unidos — as chamadas bodycams — são o centro de uma nova discussão que vem tomando forma em meio aos protestos sócio-políticos que ocorrem no país. Inicialmente usadas para assegurar maior transparência nas abordagens de oficiais da lei, especialistas em segurança argumentam que elas podem acabar limitando o direito à liberdade de expressão, caso sejam empregadas para identificar e perseguir manifestantes que tomem parte nos movimentos.
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Para começar, diversas grandes metrópoles norte-americanas, como Seattle, Boston, New York e Minneapolis foram palco de protestos contra o preconceito racial, movidos por grupos denominados antifascistas, cujo principal (porém não único) estopim foi o assassinato de George Floyd por um policial branco, no início de junho. A situação foi toda capturada em vídeo por pedestres nas imediações da ocorrência e acabou viralizando e desencadeando manifestações por todo o território, contando até com o apoio de celebridades negras, como o ator John Boyega (o Finn de Star Wars) e o lutador e campeão do UFC Israel Adesanya.
O problema: as cidades acima referidas ou tinham, ou implementaram legislações que coíbem a gravação de abordagens policiais por mecanismos terceiros: basicamente, a lei conta com a premissa de que apenas o material da bodycam é suficiente, mas com diversos casos registrados de policiais deliberadamente desligando-as em algumas abordagens, representantes de grupos de protesto acabaram por ignorar a normativa. Não para menos: diversos vídeos viralizados na internet mostram uso excessivo da força policial, o que indica a necessidade de se capturar abordagens e evitar injustiças.
O sistema de vigilância policial, porém, não se limita exclusivamente às bodycams, já que elas são apenas uma ponta de toda uma rede de alta tecnologia que empresa inteligência artificial (IA) e capacidades de reconhecimento facial. É neste ponto que especialistas argumentam um risco: "Às vezes, isso tudo revela parte dos problemas, mas a dinâmica de poder permanece inalterada”, disse ao CNET Andrew Guthrie Ferguson, autor do livro The Rise of Big Data Policing e professor de Direito da Universidade do Distrito de Columbia. “As mesmas tensões vão permanecer com as câmeras em uniformes durante protestos. Quem as controla? Quem é que pode assistir às gravações?”
Tais câmeras foram introduzidas por lei federal nos EUA em 2014 durante os protestos de Ferguson, Missouri, após um policial branco atirar e matar o jovem negro Michael Brown, de 18 anos. A ideia era a de trazer maior transparência no relacionamento da polícia com o público. Na prática, a situação acabou piorada.
Segundo canais globais, como a Associated Press; e canais locais, como a emissora de notícias dos Queens, em Nova York, sindicatos de defesa da categoria policial entraram na justiça para impedir que o conteúdo das gravações das bodycams fosse disponibilizado ao público, ao passo que vítimas de uso excessivo da força por parte da polícia tiveram que processar o estado em que viviam para ter o direito de ver os materiais em juízo.
A situação não melhora quando mudamos o contexto para a imprensa: em Chicago, no ano de 2014, um policial branco atirou e matou o jovem universitário negro Lacquan McDonald — a autópsia contou 16 disparos, sendo alguns efetuados após seu corpo ir ao chão. O relatório policial dizia que ele portava uma faca, o vídeo, que preferimos não mostrar aqui por ter um conteúdo bem forte e pode trazer gatilhos a algumas pessoas, mostra que Lacquan caminhava na direção oposta à da viatura. Uma jornalista do New York Times teve que abrir um processo para ter acesso à gravação da bodycam.
Em casos recentes, durante os protestos de junho, a polícia abriu fogo e matou David McAtee durante uma manifestação no Kentucky, mas os oficiais envolvidos na ocorrência estavam com as câmeras desligadas. Como consequência, o prefeito demitiu o chefe de polícia Steve Conrad.
Adicione a isso tudo um relatório da OneZero que revelou mais de 1,5 mil organizações que assinaram contratos de licitação para tecnologia de reconhecimento facial ao vivo em bodycams, o que causou alarmes para algumas pessoas: “Se uma câmera de uniforme estiver equipada com reconhecimento facial, ela facilmente se torna uma ferramenta que a polícia pode usar para identificar pessoas sem máscara que lhe opõe durante manifestações”, disse o analista político da Electronic Frontier Foundation (EFF), Matthew Guariglia.
A necessidade de um meio termo
Em reação às questões levantadas por diversos especialistas ao longo do tempo, várias cidades mostraram uma flexibilidade na legislação que envolve as bodycams, todas em relação à Primeira Emenda, que rege a liberdade de expressão e o direito à livre manifestação na Constituição Federal dos Estados Unidos. Metrópoles como Baltimore e Nova Iorque, por exemplo, regem que a polícia não pode utilizar a tecnologia para identificar manifestantes em caso de protestos pacíficos. Em contrapartida, vídeos que capturem escalada de violência ou crimes em flagrantes devem ser usados como evidência contra o réu e em favor da polícia. Já cidades como Washington e Dallas exigem que as câmeras façam a captura a todo tempo, seja em manifestações pacíficas ou casos de violência.
“As câmeras da polícia se tornam evidência, mas não necessariamente do que a polícia está fazendo e sim do que os manifestantes fazem”, disse Guariglia”. Outros especialistas concordam que deve haver uma certa nuance em como abordar legalmente este assunto: “Entendemos que há riscos e benefícios em ambos os lados e formas diferentes de posicionar o assunto publicamente”, diz Rachel Levinson-Waldman, conselheira sênior do programa de Liberdade e Segurança Nacional no Centro Legal Brennan. "Independentemente, é essencial que tenhamos uma linguagem que diga que as pessoas não estão sendo gravadas devido ao seu envolvimento em atividades relacionadas à Primeira Emenda".
Atualmente, diversas propostas de reforma parecem encontrar uma argumentação comum: bodycams não precisam ser acionadas em abordagens de rotina, mas devem ser imediatamente ligadas quando for identificado o uso da força por parte da polícia para desarmar uma situação mais explosiva. Entretanto, considerando que a maior parte dos registros em vídeo de má conduta policial vêm de celulares de terceiros e não das bodycams, todos os especialistas recomendam que abordagens sejam registradas com smartphones.
Fonte: CNET; Associated Press; QNS; New York Times