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Análise | Spiritfarer é um ponto fora da curva ao falar sobre cuidar do outro

Por| 18 de Agosto de 2020 às 14h00

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Thunder Lotus
Thunder Lotus

Diz a mitologia grega que o Caronte é a representação da transição. Também conhecido como Barqueiro da Morte, ele é o responsável por levar as almas moribundas do mundo dos vivos ao dos mortos. Sem julgamentos, sem pesares, sua função é apenas o rito de passagem, do modo mais confortável e menos sofrido possível.

Essa também é a descrição de Stella, a personagem principal de Spiritfarer. O game é o mais novo da Thunder Lotus, conhecida pelo sucesso de Sundered. Aqui, o jogador é transposto de forma leve à figura do barqueiro dos espíritos, cuja função é garantir que as almas quase finadas tenham uma boa passagem.

Não à-toa este texto começa com uma descrição do mito grego. O título mergulha nas águas da tradição clássica e se encharca de referência à história de Caronte. Assim, conhecer este mito ajuda a ter outra camada do game.

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De forma simples, Spiritfarer é um jogo de gerenciamento de itens e pessoas. O ciclo de gameplay é bastante básico: você conhece um espírito a eminência da morte e o resgata para seu barco. Em seguida, precisa prover todo conforto, alimento e desejos finais desta alma, até o momento de passagem daquela personagem. Repita isso algumas vezes, até o fim do jogo.

Pode parecer pedante jogar o game, mas ele propõe uma experiência bastante antagônica aos jogos tradicionais. Não há aqui uma jornada do herói, um embate físico, lutas, tiros ou violência. Este game é sobre cuidar do outro e saber lidar com o luto. Por isso, é tão tocante, belo e sensível, como poucos títulos conseguem ser.

O Canaltech teve a oportunidade de conversar com Nicolas Guérin, director criativo do título. Ele passou pela Ubisoft, em franquias como Assassin’s Creed, e assentou-se no calmo mar de Spiritfarer. “Acho que estou ficando velho, sabe? Agora sou pai. A cabeça muda sobre as histórias que a gente quer contar”, confessou.

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Spiritfarer é isso: uma história diferente sobre o fim a que todos estamos fadados. Sem culpa, sem julgamento, com um olhar leve e bonito sobre a efemeridade das coisas. Junte a isso um toque da mitologia grega para dar simbolismo a tudo e entre de cabeça em um dos temas mais universais da vida.

Palavras

Embora este game seja um espetáculo visual e de iluminação, com bons movimentos e personagens, o texto do jogo é algo muito acima da média para uma narrativa comum de games.

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Afinal, Spiritfarer é sobre o fim e, como diz Machado de Assis, é quando se atam as duas pontas da vida. É no leito de morte que as reflexões sobre tudo que se viveu acontecem. É quando “passa um filme na sua mente”. Este jogo é um constante “passar de filme”, dessa forma, tão profundo.

A trama começa com Stella e seu gatinho Daffodil encontrando Charón (ou o Caronte, na tradução para o português). Prestes a se aposentar, ele passa a função de barqueiro dos mortos para nossa dupla de protagonista com a simples missão: torne a transição a mais leve e confortável possível para os passageiros. Assim, Stella se torna a nova Spiritfarer, ou seja, a barqueira dos espíritos.

É preciso ressaltar aqui o cuidado com as palavras, pinçadas com muito carinho, que a equipe teve (o que reflete em uma versão em português com grande desafio). Gostaria de reservar um momento desta análise para a escolha dos nomes.

O título do jogo já é bastante significativo: o termo spiritfarer é um neologismo que une as palavras “spirt” (espírito), “far” (além), mais o sufixo “er” (que representa proficiência). Assim, o termo diz algo como “aquele que leva os espíritos para o além”. Stella recebe este nome na versão em inglês, que foi belamente traduzido para barqueira dos espíritos na versão em português.

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Aliás, os nomes da protagonista e seu gato são também muito simbólicos. Stella é uma derivação de estrela, sendo que na mitologia grega (e do jogo) é no que transformam aqueles que morreram. Tanto que, após a passagem, os espíritos aparecem como constelações no céu do jogo.

Já Daffodil é o nome inglês para a planta conhecida como narcisa. Bom, para começar, remete ao mito inglês de Narciso, que se afoga ao buscar a própria imagem no lago. O gato é uma representação do olhar intrínseco, uma visão do indivíduo para ele mesmo, como na mitologia grega.

Por outro lado, Daffodil também é conhecido popularmente pelo nome Rosa de Charon, ou seja, a flor do Caronte como parceiro do barqueiro. Nada neste game é por acaso.

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Para terminar o momento etimologia desta análise, valem duas mais observações conjuntas. Os termos “care” (cuidado) e “share” (compartilhamento) derivam da mesmo radical de Charón. Por este motivo, é exatamente estas duas coisas que Stella precisa fazer em seu barco: cuidar dos outros e compartilhar sua comida e espaço até o fim da vida de seus visitantes.

A língua é linda demais e Spiritfarer sabe usar disso com maestria.

Mas é gostoso jogar isso? 

Passada a introdução aos detalhes de Spirtifarer como narrativa e mitologia, vamos à gameplay. Como dito no início, o ciclo é bastante simples: encontrar espíritos e cuidar deles até a morte.

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Grande parte do jogo se passa no barco de Stella. Ele é uma bela gôndola gigante com vários “puxadinhos” que você vai construindo ao longo da caminhada. O título é um jogo 2D, com movimentação em plataforma e pode ser jogado em até duas pessoas (uma controlando Daffodil e outra Stella).

No barco, o jogador encontra os espíritos com diferentes demandas e necessidades. Basicamente, o que eles oferecem ao jogador são missões a serem completadas. A primeira personagem que se conhece na trama é Gwen, um a alce cheia de elegância, mas no fim da vida por um câncer em função do cigarro (que não para de fumar).

Vamos usar aqui o ciclo de vida de Gwen para mostrar como funciona o game. O jogador encontra a personagem em uma das inúmeras ilhas que há no mapa e convence a passar seus últimos dias no navio.

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Assim, Stella começa uma jornada em tentar fazer a comida que Gwen mais gosta (pipoca e café são boas pedidas) e até construir um cômodo só para ela. O objetivo aqui é sempre deixar os personagens com o maior nível de felicidade possível.

Para alimentar e construir novos ambientes no navio para todos os espíritos, o jogador entra em um sistema de crafting que é a base do jogo. No barco, há hortas, canteiros, cozinha, marcenaria e outras ferramentas para criar itens e montar cômodos, alimentos e objetos diferentes para agradar seus hóspedes.

A parte interessante é que cada uma destas partes de crafting conta com um minigame específico. Por exemplo, para pegar troncos de árvores, é preciso serrá-las (com a ajuda do seu gato) com o movimento simples do analógico para um lado e outro. Para minerar uma rocha, jogador segura o botão de ação até o limite da força de Stella para dar uma piraretada na pedra. Caso segure por tempo demais, a personagem deixa a peça cair.

Tudo isso acontece com um item especial de Stella chamado de Everstone. O objeto tem uma energia que é alimentada pelo sol e dá potência ao barco, além de se transformar em ferramentas como o serrote, martelo, foice e outros itens que a personagem usa no seu sistema de crafting.

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O jogo também tem minigames mais de ação. Como exemplo, quando o jogador passa por uma tempestade, pode engarrafar alguns raios, precisando ficar abaixo deles antes que caiam. Em outro, o barco passa por um grupo de águas-vivas voadoras, sendo necessário pular pelo barco para pegar o maior número delas.

A decisão de colocar pequenos minigames em cada um dos sistemas é bastante inteligente. Primeiro, porque cria uma ligação maior forte com a ação de plantar, cozinhar e afins. Como o jogo é sobre isso, ver a animação de Stella para todas estas ações é gratificante. Ainda, os minigames tiram a tendência da protagonista de ser apenas “uma menina de entregas” e a torna como aquela que provê e faz as coisas.

Por fim, os minigames também têm uma terceira função: preencher o espaço de navegação. Além da gameplay no barco, o jogador também tem que explorar ilhas distribuídas em um vasto mapa. Para isso, vai até um cavalete cartográfico e indica o rumo do navio.

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Não é necessário pilotar o barco, mas apenas esperar que ele chegue ao seu destino, o que pode demorar certo tempo, caso você escolha algo distante. Assim, ter o que fazer em seu navio ajuda a quebrar esta monotonicidade que poderia acontecer no movimento.

O fim

Embora tenha estas mecânicas de gameplay, Spiritfarer ainda é um jogo sobre ouvir. Talvez, por isso, Stella seja uma protagonista silenciosa: sua função é de observador, externo, não-julgador.

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Neste ciclo de criar e prover o melhor para seus tripulantes, o jogador também passa a conhecer mais sobre a personalidade de cada um daqueles espíritos. O que gostam de comer, o que odeiam, qual seu passado e o objetivo final de suas existências.

Gwen só quer ver uma última vez a sua antiga casa, com uma conturbada relação paterna. Já a cobra Summer é toda exotérica e vegetariana, querendo se reconectar com a sua espiritualidade. O casal de leões Astrid e Giovanni vivem uma relação conturbada pelo rapaz mulherengo.

Conhecer o cotidiano de cada um destes espíritos é um prato cheio para o deleite. O texto das falas de cada um é muito poético e simbólico, o que deixa toda a narrativa ainda mais bonita e gostosa de acompanhar.

Contudo, o game brilha mesmo na passagem. Você só vai chegar a esta primeira experiência depois de horas de jogo e é assim que tem que ser. O motivo é obvio: quanto mais tempo você passar cuidando e compartilhando do seu espaço com o outro, mas tocante será o momento da partida.

Depois que todos os desejos daquela personagem foram, enfim, supridos, ela chega para Stella com a seguinte frase: “chegou meu momento”. O jogador precisa guiar os espíritos para a Everdoor, a porta do além.

Como este é o ponto mais importante do jogo, é também, de longe, o mais bonito visual e emotivamente. Stella e Daffodil seguem com uma gôndola menor levando o espírito para sua passagem. O jogo coloca um silêncio no fundo, somente com o som das folhas e o barulho dá água no casco do barco. O momento é de luto.

Neste caminho até a porta do além efetivamente, o espírito começa o processo de atar as duas pontas da sua vida, a reflexão que leva ao descanso em paz. No caso de Gwen, recorda do pai ausente e o perdoa, lembra da mãe, da sua casa, da infância. É um momento bastante bonito e tocante.

Todo este trajeto silencioso é acompanhado da câmera que vai se abrindo, distanciando-se dos personagens. A função disso, é torná-los pequenos na tela e transpor este sentimento também para o jogador. Você se sente muito pequeno ali.

Chegada a hora da passagem, é possível ainda dar um último abraço de adeus. É interessante que Spiritfarer conta com um botão dedicado para abraçar o outro, o que eu nunca havia visto em outro game.

O momento do adeus é visualmente impressionante, com jogos de luzes e uma música muito tocante. Assim, ao atravessar a porta do além, o espírito sobe aos céus e se torna uma constelação.

Interessante é como Stella não reage com tristeza nem pesar. Sua missão não é essa, mas apenas garantir uma boa morte para aqueles que lhe confiam esta passagem. Uma lição importante sobre saber lidar com o fim da vida.

Técnica

Estamos falando de um jogo do estúdio que fez Sundered. Assim, não é de se espantar que Spiritfarer é extremamente lindo e bem-acabado. O Canaltech teve acesso a uma build antecipada ao lançamento para esta análise, o que geralmente é acompanhada de alguns problemas. Contudo, tirando alguns bugs bem pontuais, não houve qualquer problema de execução.

A animação e arte do jogo é daquelas de se enquadrar. Ou melhor, são vários os momentos em que eu só gostaria de parar tudo para transformar aquilo em uma screenshot e usar como fundo de tela do computador.

Todos os personagens são bastante únicos, com animações bem peculiares. Os minigames trazem um prazer bastante interessante de execução respondendo muito bem aos comandos do controle. Em suma, tecnicamente, Spirtifarer é um primor em perfeccionismo na simplicidade que ele propõe.

Aqui, vale um destaque bastante especial para a tradução do jogo. Como se pode perceber no início deste texto, as escolhas de palavras aqui são extremamente importantes para a simbologia do game. Com isso, eleva o desafio da tradução para níveis bastante elevados.

O Canaltech jogou grande parte do game na versão em inglês, sendo que o patch com o pacote em português (ainda inacabado) chegou pouco antes do lançamento. Pelo que se pode ver da tradução, houve um cuidado imenso em manter a poesia das falas e a profundidade de tudo. Ou seja, pode jogar (é até recomendável) o título em português que você terá uma experiência mais fluida e não perderá nada da troca de palavras que o game propõe.

Essencial

Com isso, Spiritfarer é um dos títulos mais únicos apresentados nos últimos anos. É interessante como a Thunder Lotus soube carregar o game de mitologia e um excelente texto com uma gameplay tão básica, mas concomitantemente prazerosa.

A proposta aqui é cuidar do outro e ouvir boas histórias, oferecendo-lhes uma leve partida. Assim, jogar Spiritfarer é uma experiência tão tocante quanto relaxante. Não há lutas, não há batalhas, apenas um pouco de drama, uma pitada de risadas e bastante cuidado.

Spirtifarer é um grito solitário de amor e carinho em um cenário de games pautado pela ideia de que a violência é o cerne da jogabilidade. Não que cada jogo não tenha seu espaço, mas este título (como outros) mostra que é possível contar uma história divertida, tocante, com gameplay sem exigir o confronto.

Dê uma chance a este título, respeite seu tempo, sua narrativa e escute a história que os personagens querem contar. Garanto que, se você mergulhar aqui, sairá encharcado de boas lembranças e um coração mais pronto para receber o outro.

Desenvolvido e publicado pela Thunder Lotus, Spiritfarer chega em 18 de agosto de 2020 para PlayStation 4, Xbox One (via Game Pass), Nintendo Switch, PC e Google Stadia. Esta análise foi realizada com uma cópia antecipada para PC cedida pela desenvolvedora.