Representatividade de pessoas transexuais e não-binárias nos games importa!
Por Ares Saturno | •
É cada vez mais comum vermos pessoas transexuais na mídia, visibilidade que acontece gradativamente e já chegou ao entretenimento e à tecnologia. E nos games, não poderia ser diferente. Já não é raro encontrar jogos permitam relacionamentos românticos entre personagens independentemente de seus gêneros, como acontece no The Sims e no Stardew Valley. Existe também uma gama de jogos que apresentam mais opções à pessoa que estiver jogando do que os gêneros binários, masculino ou feminino, permitindo que pessoas não-binárias se sintam confortáveis e representadas ao jogar.
O jogo Undertale foi mais longe e nos presenteou com Frisk, protagonista completamente agênero, com imagem e nomes que não costumam ser associados ao masculino ou ao feminino. Além de ter o texto do jogo adaptado para não fazer nenhum tipo de flexão quanto ao gênero, mantendo-o sempre neutro, o jogo brinca com a não-limitação de gênero da personagem ao fornecer ítens de armadura como "Manly Bandana" (ou, em tradução livre, "Bandana Máscula") e o "Old Tutu", uma saia velha de ballet, que inclusive podem ser usados ao mesmo tempo.
Para divulgar o que já aconteceu no mundo dos games em ótimas representações que respeitam a diversidade de gênero, fizemos um apanhado de jogos em que mulheres e homens transexuais, além de algumas pessoas não-binárias, são muito bem retratados:
Ned Wynert, em Assassin's Creed Syndicate (2015)
Ned é um personagem que, com exceção das roupas vitorianas, representa bastante os transmasculinos, em especial aqueles que não fazem uso de testosterona. Seu gênero não é minimamente relevante para o enredo, fato que o diretor criativo do jogo, Marc-Alexis Côté, explica com simplicidade: "Ele será um personagem que fornece as missões. O personagem é simplesmente trans".
A empresa diz que o desejo de incluir mais representatividade trans em seus jogos veio por meio de uma equipe de profissionais na criação do jogo, que também é diversa.
Cremisius Aclassi, de Dragon Age: Inquisition (2014)
Em certa parte do jogo, há a possibilidade de perguntar a Cremisius "Krem" Aclassi: "Por que você decidiu viver como um homem?". Impaciente com o questionamento, o garoto com tom de voz ríspido inicialmente responde: "Eu não decidi nada. Eu fui assim a minha vida inteira." Ele, então, começa a explicar que, por pressão de seus pais, ele estava prestes a se casar com um filho de mercador, mas percebeu que não era o que queria. Ele faz revelações com as quais outras pessoas trans poderiam se identificar, como, por exemplo, relatar que, quando criança, brincava de imitar o pai se barbeando.
Krem também conta que precisou sair de Tevinter, sua cidade de origem, quando foi descoberto no exército que ele era transexual. Os diálogos com o mercenário podem ser conferidos no vídeo abaixo, disponível com legendas e áudio em inglês:
Morpheus D. Duvall, de Resident Evil: Dead Aim (2003)
Morpheus é obcecado com procedimentos de beleza e dá a entender que já passou por algumas cirurgias de redesignação genital. Ele também injeta em si mesmo um vírus mutagênico que faz com que ele adquira uma forma com seios, quadris arredondados e usando salto alto.
Flea, de Chrono Trigger (1995)
Nesse RPG para Super Nintendo, Flea se apresenta como personagem sem determinação de gênero binário. Em dado momento do jogo, Flea diz: "Masculino... Feminino... Qual é a diferença? O poder é lindo, e eu tenho o poder!".
Jean Armstrong, de Phoenix Wright: Ace Attorney Trials and Tribulations (2004)
Nesse clássico jogo jurídico de Nintendo DS, o chef de cozinha Jean Armstrong combina uma forma frequentemente associada com o masculino, com braços musculosos, barba e bigode, com adereços geralmente relacionados com o feminino, como uso de maquiagem e roupas cor de rosa.
Durante o jogo, sua não conformidade com os gêneros binários rende confusão nos outros personagens, mas ele sempre usa pronomes masculinos ao falar de si mesmo, mostrando que a expressão de gênero não precisa seguir regras.
Mizhena, em Baldur's Gate: Siege of Dragonspear (2016)
Em um determinado ponto do jogo, podemos perguntar à guerreira-clériga Mizhena sobre seu nome pouco convencional. A resposta da garota é, em tradução livre: "Quando eu nasci, meus pais pensaram que eu era um garoto e me criaram como se eu fosse um garoto. Com o tempo, nós todos entendemos que eu era verdadeiramente uma mulher. Eu criei meu novo nome das sílabas vindas de diferentes linguagens. Todas têm um significado especial para mim, são um reflexo verdadeiro de quem eu sou".
A desenvolvedora do jogo, Beamdog, posteriormente se arrependeu de inserir uma pessoa transgênero em sua saga de jogos sem dar a ela uma história pessoal mais elaborada, mas as pessoas transexuais se sentiram bem representadas por Mizhena, uma vez que nem tudo sobre pessoas trans deve girar em torno de suas expressões de gênero.
Quina Quen, em Final Fantasy IX (2000)
Quina Quen pertence a uma espécie em que não há gênero, conhecida como Qu. A aparência de Quina também não revela muito, nesse sentido. Os pronomes utilizados para se referir a Quina durante o game são "s/he", uma forma dúbia de mesclar os termos "ele" e "ela" em inglês. A personagem tem a opção de se envolver romanticamente com Vivi, um garoto mago cisgênero.
Entretanto, não é toda pessoa transexual representada nos games que é digna de celebração. Como vivemos em um mundo ainda muito opressor às pessoas gênero-diversas, algumas personagens são representadas de forma a reforçar estereótipos e estigmas, fazendo um real desserviço à população trans, já marginalizada e pouco representada. Em outros casos, a forma que a indústria desenvolvedora de jogos se posicionou em relação a esses personagens ilustra os preconceitos que as pessoas trans estão frequentemente expostas.
Reni Wassulmaier, de Grand Theft Auto: Liberty City Stories (2005) e Vice City Stories (2006)
Atuando na direção de filmes adultos avant-garde, Reni Wassukmaier teve designação como pertencente ao gênero feminino ao nascer e passou por diversas transições de gênero ao longo de sua vida. De gênero fluido, Reni é aparece em Grand Theft Auto: Liberty City Stories (2005) como uma DJ da rádio Flashback FM onde, entre uma música e outra, fornece pistas sobre já ter vivido como homem anteriormente.
No jogo seguinte, Grand Theft Auto: Vice City Stories (2006), que se passa 14 anos depois do primeiro contato com Reni, a personagem já passou por três cirurgias de redesignação genital e está prestes a encarar a quarta, e cabe a pessoa que estiver jogando levá-la ao hospital.
Na vida real, obviamente, tantos procedimentos cirúrgicos são impossíveis. Também é bom lembrar que nem só de cirurgias vivem as pessoas transexuais, uma vez que existem aquelas que não almejam "entrar na faca" para se sentirem confortáveis com seus corpos.
Poison, de Street Fighter X Tekken (2012)
Poison estreou nas franquias de games com o Final Fight (1989) e ainda apareceu em Mighty Final Fight (1993), Final Fight Revenge (1999), Street Fighter X Tekken (2012) e Ultra Street Fighter IV (2014), sendo que, até 1993, era uma somente uma adversária para quem estivesse jogando, mas após 1999 se manteve como personagem jogável.
O mais curioso sobre Poison é que a Capcom chegou a dar diferentes versões sobre suas cirurgias íntimas, mudando de versão a depender do país.
Além disso, Poison protagonizou um boato de que os executivos da Nintendo teriam decidido divulgar sua transexualidade como uma desculpa socialmente aceitável para que as pessoas que jogassem Final Fight não sentissem culpa ao praticar violência contra mulheres cisgêneras. Por mais revelador em relação à transfobia que esse hoax seja, isso não aconteceu de fato.
Birdo, de Super Mario Bros. 2 (1988)
Na primeira edição do manual que acompanha o jogo para o público norte-americano, Birdo é apresentada como "macho que acredita que é uma fêmea e prefere ser chamada de Birdetta".
Apesar da maneira transfóbica de explicar a transexualidade da Birdetta, ela é a primeira personagem transexual da Nintendo.
Erica Anderson, Catherine (2011)
Erica é a garçonete do pub Stray Sheep Inn, onde ela se envolve romanticamente com Toby. A desenvolvedora do jogo, Atlus, foi severamente criticada por manter estereótipos associados a mulheres transexuais ao construir a personagem de Erica.
Além disso, é vergonhoso assistir a um dos finais do jogo (cuidado, spoilers!), em que Vincent e Katherine se casam no pub e Erica é exposta por seu parceiro romântico, Toby, que tem problemas em assumir o relacionamento por ela ser transexual, e tem seu nome de registro mencionado. Durante os créditos do jogo, é possível ler "Eric (Erica) Anderson", numa demonstração absurda de transfobia.
A transfobia também acontece quando ela é a única personagem feminina que relata ter os mesmos pesadelos que acometem apenas aos homens do jogo. Abaixo, é possível ver toda a cena degradante a qual a personagem é submetida apenas para alívio cômico e manutenção da transfobia: