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Como os jogos usam morte e violência para falar sobre a vida

Por| Editado por Bruna Penilhas | 21 de Setembro de 2021 às 16h19

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Reprodução/Naughty Dog
Reprodução/Naughty Dog

Você já contou quantas pessoas já matou nos videogames? É provável que não; afinal, nós precisamos fazer de tudo para chegar a um determinado ponto ou para cumprir um objetivo específico, e isso inclui matar quem tenta nos impedir. Afinal, os videogames banalizam a morte e o ato de matar?

Antes de começarmos a discussão, permita-me fazer um adendo: meu objetivo não é discutir a moralidade dos videogames, nem cair na fajutice de que “jogos deixam as pessoas violentas” — estamos cansados de ler estudos e pesquisas científicas apontando que não há evidências que relacionem games diretamente com atos violentos. Quero apenas propor uma reflexão sobre como matamos sem pensar, principalmente NPCs (personagens não jogáveis), e como alguns games têm tentado fazer com que nós pensemos sobre isso.

A morte sempre foi uma mecânica presente nos games, seja pelas vidas extras, pelas telas de game over ou pelos inimigos derrotados. Mas raramente sentimos nada por isso: os personagens simplesmente desaparecem do cenário, ou dão “respawn” e tudo começa de novo. Agora, a morte deixa de ser uma mecânica para se tornar um tema central da narrativa.

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Isso já acontecia em games indie, como The First Tree, de David Wehle, To the Moon, da Freebird Games, e Last Day of June, da Ovosonico; mas agora passou a acontecer em games triple-A (ou seja, jogos com grandes orçamentos), como The Last of Us Part II. Sem falar em jogos souls-like, em que o jogador provavelmente morrerá inúmeras vezes no mesmo desafio, e nos jogos permadeath, em que a morte é permanente.

“Existe uma relação interessante do jogador (e da sociedade como um todo) com a morte, pois não sabemos lidar com ela”, diz Livia Scienza, doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Ela estuda o impacto dos videogames na formação da empatia e da violência em crianças. “Temos uma fissura, um certo fascínio pela morte e pela violência. Sentimos medo de morrer e do que vem depois disso”.

A pesquisadora lembra também que a maior parte dos grandes lançamentos têm mecânicas baseadas em armas. Para ela, essa é uma herança do próprio estilo de vida dos Estados Unidos, país que tem “uma cultura de conquista de povos, de terras através da força bruta”, diz. “Os heróis dos filmes que consumimos também usam da violência para conquistar a paz”, por exemplo. Esse padrão, no entanto, se ressignifica gradualmente em uma via de mão dupla.

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Spiritfarer e o amadurecimento da indústria (e dos desenvolvedores)

“A indústria dos games, desde o começo, se importa com os homens jovens, em geral. Eles tendem a ser mais violentos em suas vidas, a se distrair matando pessoas — e eu digo isso sendo um homem jovem”, disse Nicolas Guérin, diretor criativo da Thunder Lotus, em entrevista ao Canaltech. O estúdio lançou em 2020 o jogo Spiritfarer, em que você ajuda espíritos a realizarem seus últimos desejos antes da morte. “É a única abordagem: precisamos superar um desafio e, em seguida, confrontá-lo a partir de uma perspectiva de violência física.”

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Entretanto, ele ressalta que jogos como Call of Duty, Rainbow Six ou quaisquer outros cujo único objetivo é matar ainda são divertidos — e não há problema em gostar disso. Eu mesmo, que estou escrevendo este artigo, sou apaixonado por VALORANT, jogo de tiro da Riot Games. Mas é interessante notar como esses games (e nós mesmos, como jogadores) banalizam a violência e a morte. “Eu acho que, sim, nós normalizamos a morte nos videogames. Não é como se matássemos outras pessoas, mas sim como se estivéssemos superando um objetivo, completado um desafio”.

A visão de Nicolas é curiosa, visto que ele trabalhou na Ubisoft por oito anos e foi um dos principais nomes da franquia Assassin’s Creed. Hoje, mais velho, pai de uma menina de oito anos, ele diz que sua perspectiva sobre jogos mudou. “Você se sente mais vulnerável. Eu penso que ‘se algo acontecer comigo, será terrível para ela’. Isso mudou levemente o meu gosto” — não à toa, estamos vendo uma avalanche de jogos “simuladores de pais tristes” chegando ao mercado.

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Ele credita isso a alguns fatores: o primeiro é o amadurecimento. “Conforme envelhecemos, tendemos a diminuir essa vontade de destruir coisas, esse impulso violento”, diz. O segundo é o amadurecimento e diversidade crescente da própria indústria. “Nós temos muito mais mulheres, pessoas com outras origens e culturas jogando e criando jogos. A violência ainda pode ser o meio para um fim, mas é apenas uma das maneiras pelas quais podemos nos distrair. Há outras formas possíveis de criarmos essas experiências.”

E quais jogos utilizam dessas outras formas? Nicolas cita alguns títulos que “conversam com ele”, como Disco Elysium. “É um jogo ainda adulto, com um tom político, personagens divertidos e uma experiência profunda. E tudo o que você faz é selecionar opções de diálogos”.

Ele também cita outros exemplos, como The Last of Us Part II, Red Dead Redemption 2. “São jogos violentos e com orçamentos gigantes, mas que querem dizer algo, não simplesmente uma matança gratuita — o que ainda é divertido”, ressalta. “Eu tento passar meu tempo consumindo entretenimento que me traga algo como ser humano”.

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The Last of Us Part II e o peso da violência

Atenção: o texto a seguir contém spoilers de The Last of Us Part II.

OK, vamos falar agora de um jogo um tanto quanto perigoso. Muitos o odeiam, muitos o amam, mas uma coisa é consenso: The Last of Us Part II, da Naughty Dog, tenta fazer o jogador sentir o peso de cada decisão feita, além de empatia ao colocá-lo no controle de Abby.

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“A pessoa vê [um personagem] e diz: ‘isso aqui é um nada. Eu posso bater em uma coisa que é um nada. Eu posso ser violento com uma coisa que não tem sentimento, emoção, vida”, diz Livia. A pesquisadora ressalta também que existem estudos acadêmicos afirmando que “para banalizar a violência, usam-se zumbis como personagens”.

“É muito legal fantasiar minha violência em algo que não terá consequência nenhuma para mim. A partir do momento em que você conhece a vida de um NPC, você pensa: ‘poxa, ele tem uma filha, uma esposa, um pai’. Isso faz você pensar se realmente quer bater nele”, reflete a pesquisadora. “E isso é pior ainda com zumbis”.

É exatamente o que acontece com a relação entre Ellie e Abby. Afinal, quem poderia dizer que o médico no fim do primeiro jogo, apenas uma das centenas de pessoas que matamos no jogo, teria uma família? Uma história? E que teria uma filha adolescente que, anos depois, se vingaria pelo trauma causado pelo assassinato do pai?

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Esse mesmo trauma é vivido por Ellie após Abby matar Joel. Afinal, o personagem também tinha uma família, uma história, e uma pessoa que, embora não seja filha biológica, mantinha uma relação paternal com ele. Tanto a mocinha quanto a vilã (dependendo do seu ponto de vista) se tornam, no fim, pessoas iguais, apavoradas e obcecadas pelos mesmos motivos.

Um artigo acadêmico publicado por Rosana Ruas Machado Gomes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que traumas “são experiências conectadas a eventos catastróficos ou muito dolorosos”. O texto continua:

“Como nota Freud (2006), essas experiências não apresentam a possibilidade de jamais terem produzido prazer no passado, e não são menos desagradáveis hoje. Além disso, não assumem a forma de sonhos ou memórias; em vez disso, assombram o sobrevivente na forma de novas experiências, repetidas sob a pressão de uma compulsão. Freud (2006) também observa que um dos traços desses casos está ligado ao modo como o sobrevivente teve uma experiência passiva, sobre a qual não tem influência, e na qual reiteradamente encontra o mesmo destino.”
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Ellie é compulsiva por Abby, e talvez por isso nós também sejamos. Para cumprirmos nosso objetivo, precisamos passar por alguns obstáculos — e isso inclui algumas pessoas. Normalmente, isso não nos abalaria; porém, o game nos insere em situações que nos deixam desconfortáveis e nos fazem questionar a compulsão da própria personagem que controlamos. É como se Ellie tivesse passado dos limites, e nós também.

Momentos como esse não faltam: como quando somos obrigados a apertar os botões do controle para espancar Nora até a morte, esfaquear Mel no pescoço — para, em seguida, descobrirmos que essa última estava grávida —, ou para agredir e estrangular Abby.

Outros detalhes interessantes que ajudam na imersão são que alguns inimigos suplicam pela vida quando estão prestes a serem mortos, ou os cães que choram pelos cadáveres dos tutores (assista no vídeo abaixo, no minuto 13:50). É como se esses NPCs tivessem histórias e relações também.

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Death’s Door e o respeito aos inimigos

The Last of Us Part II me fez pensar nos vilões ao me colocar na pele de um — se é que dá pra chamar alguém ali de vilão.. Mas outros jogos também me fizeram refletir sobre isso. O mais recente foi Death’s Door, um jogo indie desenvolvido pela Acid Nerve e publicado pela Devolver Digital em julho deste ano.

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“É interessante que muitos games tenham o ato de matar como uma parte central de todo o gameplay. Sua atividade principal é matar pessoas, e você faz isso sem pensar no conceito da morte”, disse David Fenn, um dos cocriadores de Death’s Door em entrevista ao Canaltech.

No game, a morte não existe mais. O trabalho de levar as almas ao fim eterno está a cargo de um seleto grupo de corvos, que trabalham obsessivamente em um escritório cinzento. O jogador controla um desses corvos, que, após um acidente, precisa viajar entre mundos para ceifar algumas almas gigantescas — e é claro que elas não querem morrer.

O que me chamou a atenção no game é que, após cada batalha contra um chefão, você participa de um funeral. Estão presentes o coveiro e algumas das pessoas mais próximas ao vilão. É proferido um discurso que exalta sempre as qualidades e feitos do inimigo, explicando os motivos que o tornaram ser uma pessoa tão má (ou, apenas, buscar a vida eterna).

“Não é, necessariamente, um momento vitorioso”, afirma Fenn. “O coveiro não fala pra você o quão ótimo você é, mas sim sobre a vida daquela pessoa”. Já o colega de Fenn, Mark Foster, que também é cocriador de Death’s Door, diz: “todos eles têm as suas motivações, os porquês deles fazerem o que fazem. Os vilões são sempre baseados na sua perspectiva. Se todos tivessem mais empatia, talvez o mundo fosse um lugar melhor”. Ele ressalta, porém, que alguns limites devem ser considerados (nota do repórter: alguns desses limites estão descritos na legislação).

“Há personagens pelos quais você pode sentir empatia, se colocar na posição deles, entender porque eles fazem o que fazem”, conta Mark. Ele finaliza: “acho que você só precisa ser uma boa pessoa e torcer para não ser o vilão da história de outra pessoa”.

Esta é uma das falas de Epitáfio, o coveiro, que mais me tocaram:

“Suas motivações podem ter sido tolas, mas a vontade de viver está profundamente arraigada. Quem pode dizer o que qualquer um de nós faria se tivesse as mesmas opções deste senhor. Vamos fazer silêncio em homenagem a ele.”

Eu devo me sentir culpado por gostar de matar gente no games?

A resposta é não. “Você não precisa se culpar pelo que faz nos videogames, mas tentar apenas pensar no porquê do que você faz”, sintetiza Livia. “Se você tem medo de ser agressivo no mundo real, mas usa os jogos como escape, ainda é uma justificativa válida. Porque é um mundo virtual”, diz.

A pesquisadora ainda faz um paralelo dos videogames com um sonho. “Você se sente mal por sonhar algo que seria socialmente inaceitável?”, questiona. “Tem gente que se sim, e tem gente que pensará que foi apenas um sonho. O jogo tem essa mesma função para algumas pessoas”.

Ou seja: não se sinta culpado, hipócrita ou um assassino impiedoso ao matar um zumbi ou um NPC qualquer — não é como se estivéssemos prestes a criar os “direitos dos NPCs”. São nossas formas de escapar para um mundo virtual, em que nos projetamos em outros personagens, histórias e contextos — e todos nós gostamos disso. “O foco deveria ser uma pessoa consciente, e ser um jogador consciente. Mas sem culpa!”

Com informações de: UCS