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Como os jogos usam morte e violência para falar sobre a vida

Por  • Editado por  Bruna Penilhas  |  • 

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Reprodução/Naughty Dog
Reprodução/Naughty Dog

Você já contou quantas pessoas já matou nos videogames? É provável que não; afinal, nós precisamos fazer de tudo para chegar a um determinado ponto ou para cumprir um objetivo específico, e isso inclui matar quem tenta nos impedir. Afinal, os videogames banalizam a morte e o ato de matar?

“A pessoa vê [um personagem] e diz: ‘isso aqui é um nada. Eu posso bater em uma coisa que é um nada. Eu posso ser violento com uma coisa que não tem sentimento, emoção, vida”, diz Livia. A pesquisadora ressalta também que existem estudos acadêmicos afirmando que “para banalizar a violência, usam-se zumbis como personagens”.

“É muito legal fantasiar minha violência em algo que não terá consequência nenhuma para mim. A partir do momento em que você conhece a vida de um NPC, você pensa: ‘poxa, ele tem uma filha, uma esposa, um pai’. Isso faz você pensar se realmente quer bater nele”, reflete a pesquisadora. “E isso é pior ainda com zumbis”.

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É exatamente o que acontece com a relação entre Ellie e Abby. Afinal, quem poderia dizer que o médico no fim do primeiro jogo, apenas uma das centenas de pessoas que matamos no jogo, teria uma família? Uma história? E que teria uma filha adolescente que, anos depois, se vingaria pelo trauma causado pelo assassinato do pai?

Esse mesmo trauma é vivido por Ellie após Abby matar Joel. Afinal, o personagem também tinha uma família, uma história, e uma pessoa que, embora não seja filha biológica, mantinha uma relação paternal com ele. Tanto a mocinha quanto a vilã (dependendo do seu ponto de vista) se tornam, no fim, pessoas iguais, apavoradas e obcecadas pelos mesmos motivos.

Um artigo acadêmico publicado por Rosana Ruas Machado Gomes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que traumas “são experiências conectadas a eventos catastróficos ou muito dolorosos”. O texto continua:

“Como nota Freud (2006), essas experiências não apresentam a possibilidade de jamais terem produzido prazer no passado, e não são menos desagradáveis hoje. Além disso, não assumem a forma de sonhos ou memórias; em vez disso, assombram o sobrevivente na forma de novas experiências, repetidas sob a pressão de uma compulsão. Freud (2006) também observa que um dos traços desses casos está ligado ao modo como o sobrevivente teve uma experiência passiva, sobre a qual não tem influência, e na qual reiteradamente encontra o mesmo destino.”

Ellie é compulsiva por Abby, e talvez por isso nós também sejamos. Para cumprirmos nosso objetivo, precisamos passar por alguns obstáculos — e isso inclui algumas pessoas. Normalmente, isso não nos abalaria; porém, o game nos insere em situações que nos deixam desconfortáveis e nos fazem questionar a compulsão da própria personagem que controlamos. É como se Ellie tivesse passado dos limites, e nós também.

Momentos como esse não faltam: como quando somos obrigados a apertar os botões do controle para espancar Nora até a morte, esfaquear Mel no pescoço — para, em seguida, descobrirmos que essa última estava grávida —, ou para agredir e estrangular Abby.

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Outros detalhes interessantes que ajudam na imersão são que alguns inimigos suplicam pela vida quando estão prestes a serem mortos, ou os cães que choram pelos cadáveres dos tutores (assista no vídeo abaixo, no minuto 13:50). É como se esses NPCs tivessem histórias e relações também.

Death’s Door e o respeito aos inimigos

The Last of Us Part II me fez pensar nos vilões ao me colocar na pele de um — se é que dá pra chamar alguém ali de vilão.. Mas outros jogos também me fizeram refletir sobre isso. O mais recente foi Death’s Door, um jogo indie desenvolvido pela Acid Nerve e publicado pela Devolver Digital em julho deste ano.

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“É interessante que muitos games tenham o ato de matar como uma parte central de todo o gameplay. Sua atividade principal é matar pessoas, e você faz isso sem pensar no conceito da morte”, disse David Fenn, um dos cocriadores de Death’s Door em entrevista ao Canaltech.

No game, a morte não existe mais. O trabalho de levar as almas ao fim eterno está a cargo de um seleto grupo de corvos, que trabalham obsessivamente em um escritório cinzento. O jogador controla um desses corvos, que, após um acidente, precisa viajar entre mundos para ceifar algumas almas gigantescas — e é claro que elas não querem morrer.

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O que me chamou a atenção no game é que, após cada batalha contra um chefão, você participa de um funeral. Estão presentes o coveiro e algumas das pessoas mais próximas ao vilão. É proferido um discurso que exalta sempre as qualidades e feitos do inimigo, explicando os motivos que o tornaram ser uma pessoa tão má (ou, apenas, buscar a vida eterna).

“Não é, necessariamente, um momento vitorioso”, afirma Fenn. “O coveiro não fala pra você o quão ótimo você é, mas sim sobre a vida daquela pessoa”. Já o colega de Fenn, Mark Foster, que também é cocriador de Death’s Door, diz: “todos eles têm as suas motivações, os porquês deles fazerem o que fazem. Os vilões são sempre baseados na sua perspectiva. Se todos tivessem mais empatia, talvez o mundo fosse um lugar melhor”. Ele ressalta, porém, que alguns limites devem ser considerados (nota do repórter: alguns desses limites estão descritos na legislação).

“Há personagens pelos quais você pode sentir empatia, se colocar na posição deles, entender porque eles fazem o que fazem”, conta Mark. Ele finaliza: “acho que você só precisa ser uma boa pessoa e torcer para não ser o vilão da história de outra pessoa”.

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Esta é uma das falas de Epitáfio, o coveiro, que mais me tocaram:

“Suas motivações podem ter sido tolas, mas a vontade de viver está profundamente arraigada. Quem pode dizer o que qualquer um de nós faria se tivesse as mesmas opções deste senhor. Vamos fazer silêncio em homenagem a ele.”

Eu devo me sentir culpado por gostar de matar gente no games?

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A resposta é não. “Você não precisa se culpar pelo que faz nos videogames, mas tentar apenas pensar no porquê do que você faz”, sintetiza Livia. “Se você tem medo de ser agressivo no mundo real, mas usa os jogos como escape, ainda é uma justificativa válida. Porque é um mundo virtual”, diz.

A pesquisadora ainda faz um paralelo dos videogames com um sonho. “Você se sente mal por sonhar algo que seria socialmente inaceitável?”, questiona. “Tem gente que se sim, e tem gente que pensará que foi apenas um sonho. O jogo tem essa mesma função para algumas pessoas”.

Ou seja: não se sinta culpado, hipócrita ou um assassino impiedoso ao matar um zumbi ou um NPC qualquer — não é como se estivéssemos prestes a criar os “direitos dos NPCs”. São nossas formas de escapar para um mundo virtual, em que nos projetamos em outros personagens, histórias e contextos — e todos nós gostamos disso. “O foco deveria ser uma pessoa consciente, e ser um jogador consciente. Mas sem culpa!”

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Com informações de: UCS

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