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Será que buracos negros poderiam criar inúmeros futuros e apagar o passado?

Por| Editado por Patricia Gnipper | 04 de Novembro de 2021 às 09h11

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Se você acha a mecânica quântica estranha, com as probabilidades de um pobre gato dentro de uma caixa estar vivo e morto ao mesmo tempo, as novas ideias sobre buracos negros podem entrar na sua lista de coisas menos compreensíveis do universo. Curiosamente benevolentes, os buracos negros descritos em um novo artigo não só apagariam o seu passado, como permitiriam escolher um futuro dentre infinitas possibilidades.

Quem publicou essa hipótese exótica foi um matemático da UC Berkeley, que analisou um modelo teórico conhecido como buraco negro de Reissner-Nordström-de Sitter. Ele já havia publicado um estudo sobre esses buracos negros "diferentões" em 2018, mas o debate o levou a publicar um novo estudo, com novos argumentos. Para entender, precisamos pensar em modelos teóricos, como o clássico de Schwarzschild, que apresenta massa sem momento angular e sem carga. Mas quando rotação é adicionada ao buraco negro, as coisas ficam realmente "malucas".

Nesse modelo com rotação, os buracos negros têm um horizonte de eventos comum — o ponto de não retorno, de onde nem a luz pode escapar —, mas também surge uma segunda barreira, chamada horizonte de Cauchy. Isso faz com que esses objetos no espaço-tempo apresentem características inesperadas: muitas possibilidades são possíveis, matematicamente.

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Singularidade e censura cósmica

No coração de um buraco negro teórico, em sua descrição mais conhecida — e brilhantemente defendida por Roger Penrose e Stephen Hawking na década de 1970 — existe algo chamado singularidade, um ponto infinitesimal onde a física se quebra e deixa de funcionar corretamente. A singularidade é um local bizarro, onde a densidade da massa seria infinita, o volume seria zero e o tempo simplesmente pararia. Parece um lugar difícil de se viver, mas a Relatividade Geral mostrou coisas muito... estranhas.

Ainda nos anos 60, antes dos estudos de Penrose que o levaram a ganhar o Prêmio Nobel da Física em 2020, os matemáticos usaram as equações de campo de Albert Einstein para descrever um universo imprevisível, onde infinitas possibilidades existiriam, simplesmente ao adicionarem rotação em um buraco negro. Daí nasceu a ideia do horizonte de Cauchy, onde as equações de Einstein permitem muitas configurações diferentes do espaço-tempo, todas diferentes, mas ao mesmo tempo corretas. Isso é como abrir a caixa de Pandora para físicos teóricos.

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Em um sentido mais amplo, o horizonte de Cauchy implica não haver mais apenas uma previsão única de como o espaço-tempo evoluirá no futuro, mas muitas. Isso é perturbador o suficiente para "tirar o sono" de cientistas porque viola regras valiosas. Por isso, alguns pesquisadores determinaram alguns limites para o que poderia acontecer dentro de um eventual horizonte de Cauchy. Foi aí que Penrose elaborou a "forte censura cósmica".

A forte censura foi colocada à mesa para explicar melhor o interior dos buracos negros, sem violar o determinismo. Essa censura afirma não haver singularidades “nuas”, ou seja, visíveis. Elas sempre estão ocultas além do horizonte de eventos. Além disso (e mais importante) prevê que algo catastrófico para qualquer matéria — incluindo você e eu — que se aproxime o suficiente de um buraco negro. Uma vez pegos pelo campo gravitacional impiedoso, caímos no horizonte de eventos e experimentamos uma morte horrenda.

Isso nos impediria de acessar uma região do espaço-tempo onde seu futuro seja um mar de possibilidades, não apenas no sentido "filosófico" da coisa, mas também na matemática. Em outras palavras, seja o que estiver oculto nesses objetos, permanecerá assim, e nada perturbará as leis da física fora da singularidade (a singularidade em si ainda traz enxaqueca para muitos estudiosos). O determinismo está a salvo, com a forte censura.

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Mas o que é esse tal determinismo? Para simplificar, ele postula que, se existe o passado e o presente de qualquer coisa no universo, não é permitido mais de um futuro possível. Por isso os cientistas podem prever a órbita dos planetas muitos anos no futuro, apenas estudando a órbita observada pelos astrônomos no passado.

Mas para Peter Hintz, autor principal do novo estudo — e finalmente chegamos nele — cálculos matemáticos que incluem a expansão do universo mostram que alguns tipos específicos de buracos negros podem permitir que um observador sobreviva à passagem pelo horizonte de eventos para contemplar um futuro não determinístico.

Aqui é onde relaxamos os neurônios para nos lembrar que nada disso pode ser observado, portanto se trata de uma “questão matemática”, como explica Hintz. “Mas, desse ponto de vista, isso torna as equações de Einstein matematicamente mais interessantes”, disse ele. “Esta é uma questão que só se pode estudar matematicamente, mas tem implicações físicas, quase filosóficas, o que a torna muito legal”.

Na prática, isso significa que a Relatividade Geral pode não ser tão determinística como parece, e isso a torna um pouquinho mais próxima da mecânica quântica, que lida justamente com as múltiplas probabilidades. Além disso, é uma violação da forte censura cósmica, que por tanto tempo inibiu hipóteses mais exóticas sobre buracos negros (não que a teoria da censura seja ruim; ela exigia justamente uma boa demonstração de como quebrá-la). Também não significa que uma está certa ou errada, são apenas meios de interpretar um problema proposto pelos teóricos décadas atrás.

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Possibilidades infinitas além do horizonte de eventos

Nem todos os buracos negros astrofísicos se alimentam de maneira parecida. Enquanto os menores dilaceram a matéria pelas forças de marés e espaguetificam os objetos antes de devorá-los, os buracos negros supermassivos poderiam nos proporcionar uma experiência diferente, se fôssemos até eles. O que acontece depois é o tema de um intenso e, talvez, infinito debate, mas o novo artigo trouxe algumas ideias.

Lembra do horizonte de Cauchy, que fica após o horizonte de eventos clássico? Ele seria o ponto onde o determinismo se quebra, onde o passado não determina mais o futuro. Para a forte censura cósmica, entretanto, também estaríamos proibidos de atravessar essa região sem sermos aniquilados. Mas algo muito fascinante ocorre ali: toda a luz, matéria e ondas gravitacionais, ou qualquer outra coisa que caia no buraco negro durante toda a sua existência, alcançará o horizonte de Cauchy ao mesmo tempo.

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Com isso, um observador que também caia nesse buraco negro veria toda essa energia chegando lá simultaneamente. O problema é que tudo meio que “implodiria”, por assim dizer, caindo no esquecimento para sempre. Mas para Hintz, isso pode não se aplicar a um universo em expansão cada vez mais acelerada, como o nosso, porque não haveria tanta coisa para cair no buraco negro. Ele apenas “engoliria” a porção do universo que está disponível para ele, e mesmo essa região está em contante expansão.

A expansão do universo neutralizaria em partes a amplificação causada pela dilatação do tempo dentro do buraco negro. Especificamente nos buracos negros Reissner-Nordström-de Sitter (lembra dele?) essa amplificação seria anulada completamente, e um observador poderia sobreviver ao passar pelo horizonte de Cauchy, chegando, portanto, a um lugar não determinístico.

O autor explica que “existem algumas soluções exatas das equações de Einstein que são perfeitamente suaves, sem torções, sem forças de maré indo para o infinito, onde tudo está perfeitamente bem comportado até este horizonte de Cauchy e além”. Aparentemente, a passagem pelo horizonte de Cauchy seria doloroso, mas breve e nem um pouco fatal. “Depois disso, todas as apostas estão canceladas; em alguns casos, como um buraco negro Reissner-Nordström-de Sitter, pode-se evitar a singularidade central completamente e viver para sempre em um universo desconhecido”.

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Se essa descrição parece familiar, é porque se parece mesmo com algumas obras de ficção científica, como Interestelar, onde alguém sobreviveria ao entrar em um buraco negro e encontraria algumas variáveis, e não apenas constantes determinísticas. Mesmo conhecendo as condições iniciais da estrela que colapsou no buraco negro, por exemplo, o observador seria incapaz de dizer o que vai acontecer. Isso viola não apenas a forte censura cósmica, como também a própria física.

Os cientistas sabem que, uma vez estabelecidas as condições iniciais do universo, todas as suas partículas seguiriam comportamentos estabelecidos pelas mesmas leis que entraram em ação após o Big Bang. Se voltássemos no tempo para recriar as mesmas condições iniciais, o resultado seria o mesmo universo que vemos hoje. Isso cria um incômodo compreensível nos cientistas — tanto que alguns já publicaram estudos demonstrando que a maioria dos buracos negros “normais” não violariam a censura forte.

Mas Hintz insiste que se um único buraco negro violar essa “regra”, já seria o suficiente para colocar “fogo no parquinho” dos físicos teóricos. “As pessoas foram complacentes por cerca de 20 anos, desde meados dos anos 90, que sempre se verifica uma forte censura cosmológica”, disse. “Nós desafiamos esse ponto de vista”.

O artigo foi publicado na revista Physical Review Letters.

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Fonte: Universidade da Califórnia em Berkeley