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Crítica | Sputnik promete horror sci-fi e entrega trash indie acidental

Por| 29 de Julho de 2020 às 23h00

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IFC Midnight
IFC Midnight

Gostaria de começar esta crítica com um convite: reflita sobre como você está antes de ver um filme. Triste ou feliz, empolgado ou de má vontade, com ou sem sono. Tudo isso afeta profundamente o modo como vemos um filme. Nosso estado nos permite diversas formas de ver um filme e é por isso que quando revemos algo podemos ter uma experiência completamente diferente. Geralmente, os filmes que mais gostamos tendem a crescer a cada visita, mas a maioria não sobrevive.

Sputnik me ofereceu três experiências distintas. O trailer me deixou muito empolgada, afinal toda história de alienígena tem potência para ser uma grande história, mesmo que profundamente influenciada por um clássico como Alien, o Oitavo Passageiro (1979, Ridley Scott). O alien aparece no trailer e é bastante fofo (para os meus gostos, claro) e tinha potência para evoluir para algo ainda mais bizarro. Mas eu deveria ter dado mais atenção à minha intuição, que sempre diz para não confiar em um filme que usa a fonte Agency FB, que é basicamente a Comic Sans dos títulos de ficção científica.

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Para ser um Alien soviético, Sputnik precisaria ser um horror sci-fi com boas doses de suspense, ação e gore. Ele até acerta em alguns pontos, sobretudo na meleca que envolve a criatura e em alguns momentos que podemos ver cérebros expostos, mas o roteiro tosco e principalmente as atuações transformaram a proposta em um trash acidental não muito cativante, mas que pode ser bastante divertido.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode ter spoilers.

Cordeiro em pele de lobo

Em termos técnicos, Sputnik é no mínimo suficiente e competente. Os esquemas de luz são ótimos e os movimentos de câmera são criativos e interessantes, mas a direção não parece utilizar nada disso para contar a história, dando a sensação de um filme universitário de alunos esforçados que encontraram excelentes referências em grandes filmes, mas não entenderam que elas só funcionam dentro de um determinado contexto.

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São inúmeros os exemplos, mas um dos que mais me marcaram, nas duas vezes que assisti ao filme (porque precisava ter certeza de que não estava sendo injusta), é um momento em que Semiradov (Fedor Bondarchuk), o militar que estava no comando, olha a hora no seu relógio de pulso. O contra plongée, mostrando o personagem em uma visão de baixo para cima coloca o pulso dele em primeiro plano, mostrando o movimento do personagem como algo inumano. Será que ele também está contaminado? Não. Nem esse, nem outros detalhes para os quais a direção chama a nossa atenção têm fundamento ou desenvolvimento. Assim como o próprio filme é um embuste, também são muitas das informações fornecidas.

A ambientação do filme em 1983 pode ser uma referência à viagem espacial do Soyuz T-9, atingida no espaço, mas o título optou por fazer referência a Sputnik, a primeira leva de satélites artificiais soviéticos, mas nenhum destes era tripulado. De qualquer modo, a escolha do período foi excelente para a direção de arte, que costuma ser um dos departamentos mais caros das produções. Sputnik se beneficia da arquitetura soviética e da estética que recusa os excessos do período pós-stalinista. O minimalismo e a paleta de cores secas transforma o longa em um indie sci-fi, um trabalho que mereceria grande reconhecimento se não fosse ofuscado pela má qualidade do roteiro, da direção e das atuações.

Ainda em termos de estética, o alien claramente é uma animação, mas o CGI é bom o suficiente para não acharmos tudo completamente ridículo. Para evitar trabalho, porém, há a utilização de um recurso de época sensacional: a visualização da criatura através de câmeras e binóculos com tecnologias antigas nos proporcionando uma visão pixelizada do alien, que contribui para a tensão e ainda faz uma apropriação inteligente dos efeitos que podemos ver em Predador (1987, John McTiernan). Infelizmente, esses suspiros de genialidade não são capazes de sustentar o filme.

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Ligando os pontos

É um recurso bastante utilizado nos roteiros a inserção de elementos em um ponto da trama com o único objetivo de causar um efeito mais adiante. Mas fazer parecer natural... isso não é fácil. Sputnik tem a capacidade de tornar mais explícita a artificialidade desse recurso. A boneca vermelha, a música sobre as rosas, a cicatriz nas costas da cientista e as acusações éticas sofridas por ela, o ritmo no qual as informações sobre o paciente são reveladas, tudo isso (e mais) parece existir somente para conduzir o espectador ao próximo capítulo. As informações aparentemente vêm do nada e não têm o desenvolvimento que deveriam ter, sobretudo em se tratando de cientistas: tem algo muito errado quando o espectador se sente um cientista melhor que os personagens. E eu sou de humanas.

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Nesse quesito, no entanto, nada é pior que as sequências da criança no orfanato. Descobrimos que Konstantin Veshnyakov (Pyotr Fyodorov), o paciente, tem um filho (claro que esse é o elemento de humanização do personagem). Quando Tatyana Klimova (Oksana Akinshina), a cientista, liga para o orfanato para descobrir sobre o filho do cosmonauta, somos levados para a imagem de uma criança em uma cadeira de rodas. Essa criança aparece outras vezes e acompanhamos a sua dramática busca por um par de tênis. Tudo bem até aí. Mas isso tudo só foi inserido para entendermos o motivo de, ao final, Tatyana adotar o filho do cosmonauta. Drama que, inserido do modo como foi, soa apenas piegas.

O poder do erro

Quem gosta de cinema, vê muitos filmes. Desses, muitos não nos marcam: bons filmes, redondos, sem pontas soltas, bem normais e bastante bem executados (à maneira clássica). Somos mais comumente marcados por aqueles que são muito bons ou muito ruins. Sputnik consegue ser as duas coisas ao mesmo tempo: uma equipe técnica muito boa, nas mãos de mentes criativas não tão boas assim.

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Nada, nem roteiro, nem direção, conseguem ser piores que Pyotr Fyodorov, que interpreta o cosmonauta. Seu personagem ganha diversas camadas ao longo do filme: vítima sem memória, pai que abandonou o filho, homem apaixonado, herói nacional, outra metade de um simbionte, ser inteligente e dotado de uma memória incrível… Fyodorov passa por essas e outras nuances e em todas elas a atuação é a mesma: galã de novela mexicana. Os demais atores não ficam para trás, mas ninguém ali merece mais um Framboesa de Ouro do que ele.

Sputnik lembra muito alguns filmes de pequenos festivais, produções feitas com muito amor, mas poucos recursos e experiência. Muitas boas ideias desperdiçadas por execuções ruins e pretensões grandiosas demais. Sputnik não é de todo ruim e é possível desculpar muitos dos erros dos jovens cineastas cheios de boas intenções. Difícil é assistir sem rir.

Agora, com a vossa licença, preciso assistir Alien - O Oitavo Passageiro para realinhar os neurônios.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech