Crítica | Quo Vadis, Aida? cutuca a ferida pelo imaginário
Por Beatriz Vaccari | Editado por Jones Oliveira | 22 de Abril de 2021 às 15h00
Colaborou Sihan Felix
Filmes de combate frequentemente retratam a Primeira ou Segunda Guerra Mundial pelo tamanho do confronto sociopolítico que ambos os eventos causaram, além dos acontecimentos à parte — como os países que tiveram que se reerguer após os confrontos de 1918 ou as vidas impactadas pela Alemanha Nazista, em 1945. Os ocorridos, sem dúvida, oferecem dezenas de histórias a serem exploradas e contadas, porém há conflitos em países cujos impactos foram tão grandes quanto, como foi o caso da Guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995.
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Retratar o período que foi o verdadeiro inferno para os muçulmanos bósnios é o papel da diretora Jasmila Žbanić (que já traduziu a temática pós-guerra anteriormente no Em Segredo, de 2006) no indicado a Melhor Filme Internacional no Oscar 2021, Quo Vadis, Aida?. O longa, embora tenha poucas chances de levar a estatueta para casa diante do favorito dinamarquês Druk, mostra-se também ser merecedor.
Atenção! Esse texto pode conter spoilers sobre o filme. Leia por sua conta e risco.
Žbanić opta por trazer no início de Quo Vadis, Aida? uma cena sem diálogos e movida sonoramente à música da trilha, em que três homens olham fixamente para a direita, sem piscar, enquanto a câmera se arrasta para a esquerda. Ao cortar a sequência, o enquadramento mostra Aida, sem se mexer, olhando para o lado esquerdo, mas sem encarar qualquer um dos outros personagens diretamente nos olhos.
O espectador ainda não sabe, mas trata-se dos filhos e marido da protagonista, olhando-a com desespero nos olhos. Essa informação, quando esclarecida, dá outro tom ao momento inicial, em que a única mulher em cena é a peça-chave para a sobrevivência dos demais personagens em tela. Determinada, mas com medo; Dura, mas que corre tanto perigo quanto qualquer outro. Aida é a personagem fictícia do roteiro de Jasmila Žbanić, decidida a garantir a sobrevivência de seus familiares no genocídio que sujou as mãos da ONU com o sangue de 3.000 muçulmanos.
A cena é cortada rapidamente para a base da Organização das Nações Unidas (ONU) próxima ao vilarejo de Srebrenic, na Bósnia-Herzegovina, em que os militares holandeses da organização e os políticos bósnios negociam uma maneira de evitar a invasão do exército sérvio no local. Aida, desde esse momento, é vista e utilizada como a figura central da história, traduzindo as falas do encontro para ambas as partes independentemente de suas convicções estarem de acordo com o que é dito. Intérprete oficial da ONU e ex-professora em Srebrenic, a protagonista tem a difícil missão de comunicar ao povo o apelo dos políticos locais e dos soldados da ONU com uma guerra acontecendo ao seu redor nos últimos três anos.
Tendo apenas um objetivo, que é manter seu marido e os dois filhos em segurança, Aida desdobra-se entre a figura de oficial da ONU à disposição para seus superiores e a figura de mãe e esposa, que precisa segurar as pontas e oferecer apoio e segurança emocional para aqueles que ama. Diante de uma enorme crise e despreparo da organização mundial, Aida tenta lidar com a falta de recursos e apoio externo ao mesmo tempo que observa a ameaça crescente engolir o povo muçulmano bósnio sem hesitação.
A escolha feita pela diretora, no entanto, é de retratar a história sem imagens chocantes e regadas a sangue como acontece nos minutos iniciais de O Resgate do SoldadoRyan de Steven Spielbergou no ápice de Até o Último Homem, de Mel Gibson. O terror da guerra na obra de Žbanić é puramente mental e emocional, em que a cena mais explícita de todo o longa é uma das iniciais, com um corpo no chão.
A agonia da experiência do episódio que causou a morte de mais de 3.000 vidas muçulmanas entregues de mão beijada ao exército sérvio é construída principalmente pela empatia do espectador à Aida. É claro que a direção também procura denunciar o erro grotesco causado pela ONU que gerou, mais tarde, a punição dos militares sérvios e a prisão perpétua do general Ratjo Mladic (Boris Isakovic) — mas que nunca recuperarão os milhares de futuros que foram arrancados brutalmente dos civis bósnios.
Para inserir o público diretamente em sua atmosfera, Žbanić opta pela experiência claustrofóbica, com o uso da câmera de mão em diversos momentos e um enquadramento que não tem intenção nenhuma de mostrar as cenas de forma clara. Como nos momentos de correria e com o filme sendo transmitido na altura do ombro dos personagens, os espectadores estão sempre no meio da multidão.
Quo Vadis, Aida? transmite sua atmosfera agonizante mesmo nos momentos de silêncio, quando que o espectador presencia os interrogatórios dos líderes sérvios aos civis bósnios e até mesmo o olhar predador de abusadores sexuais às muçulmanas. O cenário inteiro é desesperançoso e modificado pelo exército sérvio e seu general com síndrome de estrela Hollywoodiana, fazendo questão de uma câmera registrando suas ações e discursos ensaiados.
Žbanić ainda vê espaço para trazer à protagonista seus momentos de anestesia, em inquietas pausas para cigarros e sonhos de uma realidade surreal sem preocupações e com cada um de seus conhecidos vivendo seus desejos. A personagem tem suas camadas exploradas nesses momentos, em que se permite ignorar por poucos minutos o caos ao seu redor e distrair-se com amenidades, como fantasiar uma festa de aniversário para o filho mais velho.
A experiência final é de se gritar no vácuo, não é à toa que o título do filme é Quo Vadis, Aida? (Aonde vais?, tirado do evangelho apócrifo conhecido como "Atos de Pedro"): Aida vai a vários lugares, corre e perde noites de sono, mas no final não sai da mesma posição em que se encontrou no início do filme. Como mãe e esposa, sua vontade e determinação em acolher sua família e tirar sua própria garantia para manter aqueles que ama seguros frequentes e pouco reconhecidas pelos líderes da ONU, que lavam as mãos diante dos pedidos desesperados da intérprete.
Quo Vadis, Aida? deixa para o subconsciente do espectador medir e pontuar a gravidade de cada um dos seus acontecimentos. O consistente roteiro de Žbanić em conjunto à direção permite o público sentir cada uma das emoções que a protagonista não esboça, mas tem, ao final das contas, seus propósitos arrancados de si e sem ter para onde correr.
Quo Vadis, Aida? está disponível nas plataformas digitais para compra e aluguel com distribuição da Synapse Distribution.