Crítica | Malcolm & Marie é um bom filme ou um profundo nada
Por Sihan Felix |
Não é difícil se deixar levar por um filme com apelos estéticos e narrativos muitos claros. Ao mesmo tempo, acaba sendo mais fácil o encantamento diminuir com o passar dos minutos se os elementos utilizados começam, de algum modo, a serem repetitivos — ou perto disso pelo menos. Malcolm & Marie, nesse sentido, é um filme declaradamente visual, que, ao mesmo tempo, busca força em seus tantos diálogos.
Acontece que a questão estética é tão bem fundamentada nos primeiros minutos, com um plano sequência quase que ligando o filme a uma peça teatral, que tudo ganha uma dimensão mais real. Dessa forma, as primeiras conversas entre os personagens-título têm um caráter de urgência quando se está assistindo ao filme, de frescor, como se estivessem sendo declamadas ao vivo.
Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!
Explosão versus implosão e sermões
Enquanto muito da intimidade do casal interpretado por John David Washington e Zendaya vai sendo desvendado, a ideia inicialmente teatral (que talvez nem tenha sido proposital) do diretor Sam Levinson (de País da Violência, 2018) vai sendo desconstruída. Se, nos primeiros minutos, os planos são mais abertos e, quando se fecham, é porque acompanham a movimentação da câmera, não demora para que a montagem de Julio Perez IV (de Corrente do Mal) intercale entre os tais planos abertos e alguns closes. Estes, que ajudam a enfatizar as emoções passadas pelos personagens dessa maneira, podem quebrar a experiência mais emergencial que se mistura na discussão proposta pelo roteiro (também de Levinson).
Por essa perspectiva, Malcolm & Marie pode se tornar uma discussão pessoal com a impressão de ter muito conteúdo, muito a dizer, mas que nunca chega ao clímax — assim como as tentativas sexuais do casal. A possível realidade dos dois, de repente, começa a se misturar com divagações de caráter pessoal, como se o roteirista e diretor estivesse expondo seus pensamentos sem muito tato: Malcolm e Marie, que pareciam ser tão vivos e independentes, ganham ares de mensageiros presos ao seu criador.
Nada exatamente errado ou corruptível nisso. Até porque, querendo ou não, toda arte carrega o artista junto. A questão é que os debates escritos por Levinson parecem ganhar corpo de sermão, como se ele estivesse querendo dizer algo e isto não estivesse em sintonia total com as personagens de Washington e Zendaya. Isso vai se complicando porque a atuação de Washington é mais expressiva fisicamente — gritos e gestual explosivos dando corpo ao que é dito — e a de Zendaya é muito menos física e mais implosiva.
Essa opção guiada pela direção pode, de algum modo, sobrepor as palavras de Malcolm às de Marie e dar voz ao estigma de que a mulher é a louca de uma relação — o que é repetido algumas vezes por ele aos berros. Claro que existe a chance, também, de que ele seja visto como um sujeito perturbado, mas Levinson afoga essas oportunidades de deixar a interpretação mais complexa ao construir as alienações dele em cima de sermões que dizem respeito ao público.
Um bom filme ou um profundo nada
Dando, assim, àquele homem uma voz mais plural, Levinson parece se perder em seu próprio discurso. Um momento que deve ser claro sobre essa abordagem, por exemplo, é quando Malcolm se exalta ao ler a crítica sobre seu filme escrita pela moça branca do L.A. Times. Ali, Levinson parece discursar sobre algo que incomoda a si mesmo. Fazendo a voz do protagonista reverberar com tanta força a respeito, pode ficar a sensação de que uma arte — um filme no caso — é o que o seu criador quer que seja e não aquilo que o público interpreta.
Isso porque todo crítico não é mais do que um espectador que escreve e que, ao escrever, traz uma visão sua sobre a obra, uma forma de pensar. Nenhum profissional da área, seja quem for, tem a verdade absoluta. Por essa lógica, ainda pode ser engraçado como a pregação de Malcolm falando, em síntese, que sua potência vai muito além da cor e descartando raivosamente a interpretação da moça branca do L.A. Times foi escrita, justamente, por um roteirista (e diretor) branco — que faz questão de colocar em jogo declarações perigosas. Em uma delas, cabe à Marie dizer que, apesar de negro, Malcolm teve oportunidades.
Malcolm & Marie pode, sem dúvidas, ser visto como um bom filme. Essa percepção pode se dar, inclusive, durante o filme e logo que ele termina. A sensação, nesses instantes, parece ser mais aguda. Por outro lado, à medida em que a experiência do momento de assistir ao filme vai passando, o surgimento de um gosto menos prazeroso e, na pior das hipóteses, de um profundo nada é uma possibilidade. E como é o tempo que diz melhor a respeito sobre uma obra — muito melhor do que qualquer espectador, seja ele um que escreve ou não —, isso não deve ser um bom sinal.
Malcolm & Marie estará disponível no catálogo da Netflix a partir do dia 5 de fevereiro de 2021.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech