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Crítica Caranguejo Negro | A realidade que grita por trás da arte

Por  • Editado por Jones Oliveira | 

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Caranguejo Negro chega à Netflix com um timing cirúrgico. Enquanto acompanhamos o desdobramento do conflito no leste europeu, o filme sueco vem com um lembrete de que não há glamour em uma guerra e que, na prática, tudo o que se encontra em um campo de batalha é dor, morte e mentiras. É um ambiente cinza e sem vida — e um convite para despertar aquilo que há de pior em todos os envolvidos.

Não que a gente precisasse ser lembrado disso — basta ver qualquer jornal para dar de cara com isso —, mas nos acostumamos a ver um tipo de cinema que tende a glamourizar o espírito bélico e a tratar o soldado como um herói valoroso que dá a vida por uma briga que nunca foi sua.

Assim, o que o filme sueco é escancarar não só a dureza de quem está na linha de frente, mas apontar que não existem inocentes com armas na mão e que não há como se tornar um sobrevivente sem, ao mesmo tempo, se tornar também um pouco de monstro.

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Para isso, o filme humaniza toda essa discussão naquela figura que todos nós somos capazes de nos identificar: uma mãe. Assim, acompanhamos a história de Edh (Noomi Rapace), uma mãe que é separada de sua filha enquanto as duas tentam fugir de uma Suécia em guerra. Capturada, ela é forçada a se alistar e, anos depois, tem a chance de reencontrar a garota caso aceite participar de uma missão suicida.

E é a partir dessa trama relativamente comum que Caranguejo Negro desconstroí a clássica narrativa dos filmes de guerra em uma trama tensa que pesa tanto qaunto um soco no estômago.

O monstro que há em nós

É realmente impossível não traçar paralelos entre o que vimos na cobertura de guerras recentes com aquilo que o novo filme da Netflix apresenta. A primeira cena do longa já é um belo lembrete do desespero de refugiados e da violência de exércitos e milícias em áreas urbanas. E é a partir dessa leitura que essa história cresce e ganha tanta força.

E um dos principais pontos nesse sentido é justamente o fato de que, em momento algum, Caranguejo Negro se preocupa em explicar o que é essa guerra. Assim como a própria protagonista fica confusa com o que está acontecendo à sua volta, somos jogados dentro desse conflito sem qualquer tipo de explicação.

Não há uma contextualização sobre quais são os lados da briga, suas motivações, há quanto tempo isso se desenrola e nem mesmo onde tudo se passa. No máximo, são mencionadas algumas cidades que localizam a trama na Suécia, mas algo muito superficial. E isso não é um problema, porque nada disso é realmente relevante. Em uma guerra, pouco importam essas respostas: no fim, tudo o que resta é um enorme vazio cinza repleto de morte.

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Assim, o que o roteiro faz é usar essa falta de explicação a favor da narrativa. O discurso que ele constrói não depende de nenhuma dessas informações, mas das transformações que seus personagens passam por estarem mergulhados nesse ambiente tão hostil.

É a partir dessa compreensão que a transição de Edh passa a fazer todo sentido. Há um velho chavão de que a guerra molda uma pessoa e aqui vemos o quanto isso é verdade, ainda mais quando a personagem é confrontada com a possibilidade de rever sua filha depois de anos no fronte nessa guerra contra um inimigo que mal tem rosto. Desesperada para se ver livre dessas amarras, ela é capaz de fazer qualquer coisa, inclusive deixar de ser a mãe amável para se tornar a soldado exemplar.

Esse dilema moral é o grande ponto de Caranguejo Negro. Afinal, por mais nobre que seja a sua motivação pessoal, ela é capaz de limpar o sangue das suas mãos depois de matar alguém? O desespero de uma mãe para rever a filha é o suficiente para justificar a morte de outras milhares de vida?

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É um questionamento complicado de fazer e que o longa não se preocupa em responder, mas de deixar o espectador a todo momento incomodado com a questão e imaginando o que faria em uma situação dessas. E é um ponto delicado justamente porque não é uma ficção distante, mas uma realidade que encaramos todos os dias no noticiário.

É aí que vemos que não há glamour algum em uma guerra. Por trás das medalhas das condecorações e de qualquer eventual sensação de dever cumprido, há o sentimento de culpa e a própria noção de que a sua humanidade ficou para trás.

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Ambiente inóspito

A tal missão suicida que Edh precisa encarar é mais um reforço dessa mensagem que o roteiro já deixa mais do que claro. A protagonista e mais um grupo de soldados são convocados para transportar uma carga especial através do mar congelado, cruzando quilômetros de gelo em patins e em território inimigo para entregar aquela que pode ser a arma que vai acabar com o conflito.

A ideia de fazer com que todo o longa seja ambientado em um deserto congelado é justamente a representação visual de todo esse vazio que a guerra traz para quem está na linha de frente. Tudo é cinza e sem vida — uma tonalidade que a fotografia de Caranguejo Negro faz questão de reforçar.

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Como se não bastasse trabalhar essa perda da humanidade na trama, o filme expõe isso visualmente, com direito até mesmo a um lago repleto de refugiados mortos no gelo do mar ártico. Imagens como essa são fortes tanto dentro do roteiro quanto nos paralelos que fazem com situações que a guerra real comumente traz aos noticiários. Mais uma vez, um soco no estômago.

Outro ponto muito interessante é a decisão do filme de tratar o exército inimigo como algo sem rosto. A todo momento que eles aparecem, estão com máscaras brancas, o que os desumaniza por completo e apenas reforça essa visão de que os soldados do lado de cá estão se tornando cada vez mais monstruosos, incapaz de enxergar o outro como indivíduo.

Avançar incômodo

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E são por pequenos detalhes assim que Caranguejo Negro se torna uma obra potente e muito interessante — e que mostra o quão rico é encarar temas já conhecidos a partir de outros pontos de vista. Ficamos tão acostumados ao olhar hollywoodiano da guerra que, quando nos deparamos com uma de verdade, a realidade soa muito mais chocante. Assim, o filme sueco vem para apontar questões com que os grandes blockbusters nem sempre estão dispostos a lidar.

É claro que o filme está longe de ser perfeito, como a grande barriga no fim do último ato bem revela, mas tudo o que é construído até ali em torno da figura de Edh é tão bem-feito que até mesmo o final mequetrefe acaba sendo perdoado.

E mesmo que ainda não seja um daqueles filmes necessários para os tempos atuais, Caranguejo Negro é aquela provocação que o cinema precisa fazer, mas que nem sempre entrega. Às vezes, precisamos de um soco no estômago para olharmos a realidade com a crueza que ela exige — e sem as falsas promessas e fantasias que tentam nos vender.

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Caranguejo Negro pode ser assistido na Netflix.