Crítica Belfast | A inocência que sobrevive em tempos sombrios
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira |
Embora Belfast seja um filme muito específico, quase como um fragmento de memória do diretor e roteirista Kenneth Branagh sobre sua infância na capital da Irlanda do Norte no fim da década de 1960, há um componente tão universal nessa história que é realmente impossível não se encantar. Afinal, independentemente do local e da época, crianças são crianças — mesmo quando a dura realidade à sua volta tenta lhes roubar isso.
- Onde assistir aos filmes indicados ao Oscar 2022
- 7 filmes sobre amadurecimento que você precisa assistir
Para isso, o longa recria o conturbado ano de 1969, quando a capital Belfast foi convulsionada pelos conflitos entre católicos e protestantes e que forçou a saída de centenas de famílias do país e, de quebra, ajudou a mergulhar a mergulhar a economia em uma dura crise. E é no meio de todos esses problemas que acompanhamos Buddy (Jude Hill).
O modo como esse garoto lida com todas essas questões que insistem em invadir o seu mundo infantil é o grande charme do filme. Afinal, para um menino de sete ou oito anos, pouco importa se o seu país faz parte ou não do Reino Unido ou de como está a situação socioeconômica da nação. Para uma criança, as urgências são outras. E é aí que a mensagem se torna universal.
Embora o recorte seja realmente muito específico dessa infância de Branagh, esse olhar da inocência é algo que não se resume apenas a quem cresceu na Irlanda do Norte nos meados do século 20. Temos crianças tentando ser crianças agora no Brasil, na Ucrânia, na Palestina, na Venezuela e em tantos outros cantos do planeta.
Belfast nos lembra que há pequenos Buddys preocupados com o primeiro amor da escola, com as notas de matemática ou aprontando na vendinha da esquina em qualquer lugar do mundo e em qualquer ponta da história, independente do que aconteça à sua volta. Por mais caótica que seja essa realidade — e que ela sempre insista em macular esse olhar leve e simples da vida —, a perspectiva infantil carrega uma simplicidade que a gente perde com os anos.
E é por isso que olhar para trás é sempre tão gostoso, mesmo que esse saudosismo nos faça esquecer do quão duros foram aqueles anos.
Duas perspectivas
Essa abordagem mais lúdica para um momento tão conturbado é o que faz de Belfast um filme muito gostoso de assistir. Embora estejamos falando de um momento da História bastante complexo e que parte desse peso seja muito bem recriado em tela — como a pequena vila que rapidamente se transforma em um campo de batalha, com barricadas e constante vigilância e a formação de milícias —, nada disso realmente importa para Buddy, que segue envolto na simplicidade da infância.
Aqui é interessante destacar que esse olhar do protagonista não é necessariamente lúdico. Ao contrário de A Vida é Bela, em que a dureza da realidade era escondida pela beleza da fantasia, Belfast segue por um caminho mais comum e não menos interessante. Apesar da crescente tensão à sua volta, ele segue preocupado com coisas infantis, se encantando com as conversas com o avô e impressionado com as mensagens ditas na igreja.
É por isso que a mensagem funciona tão bem mesmo para quem nunca pisou na Irlanda do Norte ou que não faz ideia do contexto político e social do país no fim dos anos 1960. Assim como Buddy não dá a mínima para essas explicações, elas também são irrelevantes para o espectador. O que importa é o modo como essas situações refletem na vida do pequeno e, para isso, toda e qualquer justificativa se torna desnecessária.
Isso significa que você não precisa conhecer os movimentos separatistas irlandeses e como isso refletia no aspecto religioso da população, apenas compreender que há uma tensão entre católicos e protestantes — algo que o pequeno protagonista sente na pele ao se questionar se pode continuar gostando da menina na escola por ela ter uma religião diferente. E pouco importa o porquê de o país ter mergulhado em uma crise de desemprego, apenas que isso força Buddy e ter um pai ausente que precisa trabalhar na Inglaterra para mal conseguir pagar as contas enquanto a mãe segura a barra sozinha em casa.
Belfast faz muito bem em levar ao espectador esse mesmo olhar infantil de que as consequências são muito mais importantes do que as causas, porque é esse sentimento que é universal. Mesmo distantes da realidade apresentada no filme, é muito fácil nos identificarmos com cada um desses dilemas porque, assim como o próprio Branagh, cada um de nós também teve que encarar em algum momento os reflexos da violência ou de uma crise.
Ao mesmo tempo, o longa trabalha o drama de quem tem que lidar de fato com essas questões. E a questão é que os pais de Buddy, vividos por Caitriona Balfe (Ford vs Ferrari) e Jamie Dornan (Cinquenta Tons de Cinza), não estão preocupados em fazer com que seus filhos não vejam toda essa dureza da vida, mas são envoltos em um outro dilema que o filme apresenta: o de abrir mão de sua história em prol de algo maior.
Assim, em paralelo a esse olhar tão infantil e leve, temos toda a discussão sobre a necessidade de dar adeus às suas origens, abrir mão de um mundo que você conhece na esperança de algo melhor — mais uma vez, um discurso que nos é muito próximo aqui e agora.
Enquanto a criança está vendo essa convulsão social e econômica pelos olhos infantis e preocupado apenas como isso vai afetar seu trabalho de ciências ou sobre como o Papai Noel será mais magro neste ano, os pais se dividem sobre o próprio apego que eles têm com Belfast e aquele mundo que lhes é tão próximo e caro e a possibilidade de deixar a violência e a crise para trás.
Uma lembrança distante
Um ponto que chama a atenção em Belfast logo de início é sua fotografia. Ele é totalmente filmado em preto e branco, o que dá a ele uma estética diferenciada e que impressiona logo de início, principalmente ao usar esses tons de forma bastante chapada e limpa — bem diferente da sujeira que a gente esperaria de um momento tão conturbado.
Isso dá ao filme uma aparência que fica entre o teatral e o onírico e que marca muito bem esse caráter de lembrança que toda a trama carrega. Embora não seja necessariamente um relato biográfico de Branagh, são as suas memórias que estão em cena e essa nossa tendência de idealizar o passado, por mais duro que ela tenha sido, é algo que fica evidente na fotografia adotada.
E é curioso notar como o diretor faz uso das cores nesse contexto. Em momentos muito pontuais, ele coloca tons que quebram o acinzentado da imagem — momentos esses que amarram o passado ao presente. Isso fica evidente quando Buddy vai ao cinema e se encanta com a história de um calhambeque voador, marcando o quanto a fantasia da Sétima Arte é algo que está presente na vida do diretor desde muito cedo.
Família real
Um outro ponto de destaque são as atuações, que estão realmente muito boas. O pequeno Jude Hill entrega um Buddy que é realmente apaixonante em sua simplicidade e inocência. Sem se entregar às caras e bocas, ele imprime muito bem o que um garotinho pensa e sente em momentos tão delicados.
Balfe e Dornan também estão muito bem como esse casal que tenta equilibrar a criação dos filhos, a distância forçada pelo trabalho, os problemas financeiros e a violência que literalmente bate à sua porta. São personagens tão reais que a decisão de não nomeá-los é mais do que acertada: assim como muitos outros pontos em Belfast, eles poderiam ser os seus ou os meus pais.
O mesmo acontece com os avós de Buddy, excepcionalmente vividos por Judi Dench (007: Operação Skyfall) e Ciarán Hinds (Game of Thrones), que são terrivelmente familiares. Eles mimam, dão conselhos — alguns um tanto quanto errados — e brincam com o garoto de forma tão afetuosa que é impossível não se apaixonar por essa relação e, mais, não vê-los como os nossos próprios avós. Todo momento com o trio em tela é de aquecer o coração.
Sem impacto
Só que, apesar de Belfast ser realmente um filme muito gostosinho de ser visto, ela não consegue deixar de lado aquela sensação de que ele é um filme feito para ganhar Oscar e brilhar em premiações. E não apenas porque ele é bom e acerta em muitos aspectos, mas por seguir fielmente a cartilha que a Academia adora.
Pode soar um pouco injusto apontar isso para uma história que carrega uma dose afetiva tão grande para um cineasta, mas toda a fotografia em preto e branco, a estética teatral e o próprio fato de a trama ser quase uma carta de amor a uma Belfast que só existe nas memórias são pontos que estão presentes na cartela de bingo que quase todo ganhador do Oscar carrega.
Embora não dê para dizer que essa montagem tenha sido propositalmente para arrancar elogios e levar algumas estatuetas para casa, a falta de impacto do filme acentua essa impressão. Isso porque, apesar de todo o coração que Belfast carrega, falta impacto na história que está sendo contada e em seu próprio roteiro.
A ideia de trazer esse olhar infantil e inocente para eventos pesados funciona até a página dois, uma vez que a simplicidade na perspectiva do garoto faz com que alguns eventos não tenham o peso devido. As ameaças à família, a perda de alguém importante e até a decisão de deixar Belfast são episódios que são apresentados quase que de forma corriqueira e sem a carga que deveriam trazer para a história.
E por mais que a abordagem faça sentido à proposta apresentada, isso acaba afetando a narrativa geral do longa. São pontos de virada para os personagens e que deveriam também impactar o público, mas que não conseguem chegar lá. Assim, a impressão que fica é que temos um filme que se desenrola de forma quase monótona — e realça essa impressão de que ele foi feito sob medida para premiações.
É claro que isso não faz de Belfast um filme ruim e sem alma. Pelo contrário, ele tem muito coração, mas isso tem um preço e quem procura uma estrutura de roteiro um pouco mais convencional pode sair decepcionado. Apesar da mensagem e das situações universais, o desenvolvimento de tudo acaba sendo bem mais nichado.
Ainda assim, é uma história que merece ser conferida justamente por esse caráter nostálgico que carrega. Mesmo com Kenneth Branagh declarando seu amor a essa Belfast da sua infância, todos nós temos essa cidade em preto e branco em nossas memórias, esse local em que a nostalgia e a inocência nos impedem sermos atingidos pela dureza da realidade que encarávamos na época. Em certa medida, todos nós já fomos um pouco de Buddy antes.