Crítica Ataque dos Cães | Conectados pela mesma dor que nos afasta
Por Durval Ramos | Editado por Jones Oliveira | 23 de Março de 2022 às 20h30
Em determinado momento de Ataque dos Cães, o personagem vivido por Benedict Cumberbatch explica como seu mentor o ensinou a ver o mundo de outra forma, enxergando coisas que as demais pessoas não são capazes de ver. Nas sombras de uma colina, por exemplo, era possível ver a cabeça de um lobo. E o longa da Netflix é como esse mesmo exercício de pareidolia, em que cada camada observada entrega um filme diferente.
Dirigida e roteirizada por Jane Campion (O Piano), a produção apresenta tantas interpretações e possibilidades dentro da sua história relativamente simples que é impressionante o modo como tudo isso é retratado. Muito mais do que um drama familiar, a trama se aproxima muito mais de uma tragédia clássica que explora muito bem as aflições de cada personagem e, sobretudo, no modo como essas dores afetam os demais.
E tudo é tão bem construído e retratado que é fácil entender por que Ataque dos Cães lidera as indicações ao Oscar e chega como um dos favoritos à maior premiação do cinema. É um caleidoscópio que se abre para mostrar, acima de tudo, como são as nossas dores que nos une ao mesmo tempo em que nos afasta.
Em camadas
À primeira vista, o filme é a clássica história do conflito entre irmãos — algo que a própria sinopse oficial da Netflix reforça. Como um Caim e Abel do interior dos Estados Unidos, temos essas figuras opostas que se chocam diante da preferência de Deus, aqui representada pela figura de Rose (Kirsten Dunst), recém-chegada à propriedade dos Burbank após casar com George (Jesse Plemons).
E é a partir desse novo relacionamento que começa o conflito com Phil (Cumberbatch), já que ele claramente não aprova o matrimônio e passa a tornar a vida do casal um inferno, principalmente a da mulher e de seu filho, o jovem Peter (Kodi Smit-McPhee), um rapaz de jeitos delicados que em nada lembra os vaqueiros da fazenda.
Esse olhar da trama como esse conflito entre irmãos é interessante principalmente por se complementar com o modo com que o próprio Phil encara a sua relação com George. Ele os compara com Rômulo e Remo, os irmãos lendários que fundaram Roma e que foram criados e amamentados por uma loba — no caso, a figura de Bronco Henry, uma espécie de mentor dos dois e que permeia toda a história como essa influência invisível.
Nesta leitura, as ações de Phil são lidas como reflexo desse distanciamento do irmão. Afinal, enquanto ele se apega a esse estilo de vida bruto em que foi criado, George é alguém mais cosmopolita, representando esse progresso que invade o interior dos Estados Unidos e reinventa o mundo à sua volta. Assim, o conflito nasce justamente dessa relutância em aceitar que os caminhos devem se separar, o que torna o vaqueiro muito mais cínico e desagradável.
Só que é aí que entra talvez a mensagem mais incisiva de Ataque dos Cães: a masculinidade tóxica e a sexualidade reprimida. O personagem de Cumberbatch é representado como esse clássico homem do campo, com todos os símbolos de força e virilidade. Ele anda de esporas o tempo todo, marcado pelo sol, preferindo o cheiro de suor a um bom banho e fazendo questão de ser bruto “como os homens devem ser”.
Isso tudo faz com que Phil seja realmente um personagem detestável. Em praticamente metade do filme, essas características são tão reforçadas que é fácil detestá-lo e ver o quanto ele é uma pessoa odiosa. Contudo, logo vemos que todo esse simbolismo masculino que o personagem tanto exalta traz consigo também uma forte carga homoerótica.
O longa deixa várias pistas de que essa admiração do protagonista por Bronco Henry é muito maior, beirando realmente à paixão. E embora isso não seja apresentado de forma explícita, a diretora compõe as cenas de modo que você identifique os traços de algo reprimido. O jeito de Cumberbatch falar de seu mentor, o jeito com que segura a sua sela e até mesmo os itens que ele guarda são mais do que suficientes para expor que existe algo a mais nessa relação.
Mais do que isso, Ataque dos Cães mostra o quanto o próprio Phil se sente muito mais à vontade com seus peões do que com mulheres à sua volta, como a relação conturbada com Rose deixa bem claro. Assim, o que o filme faz é tornar esses momentos entre eles cada vez mais eróticos, seja rodeando o personagem de objetos fálicos ou o colocando em meio a vaqueiros que a cada momento aparecem com menos roupas — até chegar ao momento em que está todo mundo nu.
É a partir dessa leitura de que o novo filme da Netflix é sobre essa masculinidade tóxica e como ela muitas vezes existe para reprimir um desejo que todo o conflito de Phil com Peter passar a fazer todo o sentido. Afinal, o vaqueiro durão se incomoda com o jeito delicado e até afeminado do garoto por se ver nele — não por acaso, a caracterização de Smit-McPhee foi feita de modo que ele realmente parecesse um Cumberbatch mais jovem.
Fio condutor
E é isso que torna Ataque dos Cães tão interessante. Todas essas interpretações são possíveis na história, já que cada camada apresenta um olhar diferente para aqueles personagens e que está presente na história. É como as nuvens no céu ou a projeção das sombras sob as montanhas: a depender do modo como você olha, uma forma surge.
Só que há um fio condutor amarrando todas essas interpretações possíveis e que deixa a trama ainda mais rica. Afinal, mais do que o conflito entre os irmãos, o afastamento entre eles e a própria sexualidade reprimida do peão, estamos falando de uma história de solidão.
A seu modo, cada um desses personagens é retratado como alguém solitário, ilhado do mundo à sua volta. Isso é mais evidente com Rose, a viúva dona de um restaurante numa vila que se casa com um rico fazendeiro e vai morar em uma mansão cheia de quartos e criados, mas que se sente sempre acuada. Presa nesse mundo estranho, ela não é a esposa que seu marido espera e nem a mãe que precisa ser — e responde a essa solidão procurando abrigo nas bebidas.
Com Phil, isso é um pouco mais sutil. Afinal, todo o seu comportamento detestável é justamente uma reação ao fato de ele ser alguém solitário nessa masculinidade tóxica da qual ele próprio é refém. Cercado por peões que jamais aceitariam sua história e suas verdadeiras vontades, ele só encontra abrigo na figura do irmão, que é alguém que está pouco a pouco se afastando. E é quando ele encontra Rose, a responsável por esse distanciamento e que é um espelho da sua própria dor, é que ele se torna o cão que persegue a todos na propriedade.
Condução magistral
E o grande mérito de Ataque dos Cães é o modo como tudo isso é construído. Todas essas nuances narrativas são apresentados de forma sutil. Nada é explícito e jogado na cara do espectador, que monta esse quebra-cabeça a partir das interpretações e da própria cinematografia. É um foco no modo como Phil segura e alisa a sela que pertenceu a Bronco, a forma como os figurantes são colocados cena após cena e até construção do ambiente à volta desses personagens.
São pequenos detalhes que passam despercebidos à primeira vista, mas que revelam não só como esse é um filme rico e complexo, mas como a visão de Jade Campion é ampla de modo a fazer com que todos esses elementos funcionem tão bem quando conectados.
E, é claro, não há como não falar do elenco em si. Cumberbatch está realmente incrível como um protagonista que não é vilão e nem mocinho, mas alguém humano em toda a sua complexidade e contradições. É fácil odiá-lo, da mesma forma é instigante saber tanto os seus segredos quanto os desdobramentos de suas ações.
Da mesma forma, Smit-McPhee entrega um Peter que surpreende até a última cena — literalmente. Mesmo com um jeito contido, ele é um personagem forte em um mundo bruto ao qual não pertence e que, mesmo assim, revela uma frieza para sobreviver que faz toda a trama andar.
Forte candidato
Por isso tudo, Ataque dos Cães chega ao Oscar como um dos favoritos com todo o mérito que isso representa. Ele é pesado do começo ao fim, mas de um jeito que prende o espectador e que te faz sentir as mesmas coisas que os personagens.
Ainda que o ritmo da história não seja em si tão ágil quanto muita gente poderia esperar, o drama entrega muito bem toda a densidade que esse tipo de história exige, com camadas de sobra para te fazer ficar pensando sobre as motivações de cada personagem. E, a cada nova leitura, novas formas de observar essas relações se desdobram — uma característica que poucos filmes conseguem entregar. Só por isso, já fica claro como esta é uma história diferenciada.
Ataque dos Cães está disponível no catálogo da Netflix.