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Crítica | A Prima Sofia fica equilibrado entre desejo e tédio

Por| 21 de Agosto de 2020 às 19h00

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Netflix
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Poderia ser mais um filme objetificando a mulher e a tratando como um símbolo sexual à mercê dos homens, de predadores. Mas a roteirista e diretora Rebecca Zlotowski demonstra o contrário desde o início com tanta sutileza e propriedade que muito do seu trabalho pode passar despercebido – o que é natural. A Prima Sofia (disponível na Netflix), então, pode ser visto, também, como um filme que vai do nada a lugar nenhum. A linha que divide as percepções é a mesma que equilibra o filme, tornado-o mais ou menos atraente.

Sofia (Zahia Dehar), nesse sentido, pode ser lida como uma miragem, algo a ser notado à distância e com sede – como quando deitada na areia aos flertes com Andres (Nuno Lopes). Ele, em seu iate, inquieto, parece não conseguir tirar os olhos dela, como um guepardo caçando uma gazela. Acontece que a moça não é exatamente a presa, é uma leoa camuflada.

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Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

Ser maçã

A câmera de Zlotowski, então, é ambígua: se dramaturgicamente trata a personagem como liberta, enfaticamente sem sentimentos – como ela mesmo diz à Naïme (Mina Farid) em um momento –, também faz questão de passear pelo seu corpo sem muitos pudores, materializando e literalmente projetando desejos. Ao mesmo tempo, essa dedicação da diretora ao corpo da personagem não é gratuita, é muito para provocar sensações e, talvez, para revelar que o oásis existe, que não se trata de uma miragem.

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O começo do filme, por exemplo, já é de um simbolismo gigante ao apresentar a beleza do local, aparentemente virgem, intacto, e, como se fosse a primeira vida animal, fazer aparecer Sofia. Ela, que vem nadando de qualquer lugar (e isso não importa), surge como uma divindade, a primeira das mulheres.

De todo modo, Sofia não é a bíblica Eva, ela é o fruto proibido no meio do paraíso que é o lugar. Enquanto Naïma faz questão de discutir com o sexo oposto, tentando impor sua voz, ela (Sofia) parece estar em outro degrau: o do desprezo. Os homens não importam, são seres inferiores e que, fundamentalmente, no universo do filme – especificamente no universo de Sofia –, existem para dar prazer.

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Ainda, esse prazer não se trata somente do sexual. É material também. Assim, ao mesmo tempo em que se aproveita dos supérfluos luxuosos, Sofia também se deixa ser a maçã – e a primeira cena mais explícita de sexo é, justamente, de Andres provando o fruto proibido. O mesmo fruto que o faria inventar um caso de roubo para ter desculpa plausível de não mais ver a moça, em um acesso que prova a força do anzol dela e descortina a paixão que brotou nele.

Superior ao criador

Em meio a isso tudo, A Prima Sofia consegue ser, simultaneamente, um filme sobre amadurecimento. E esse ponto diz respeito à personagem de Farid. Naïma, desde sempre, sabe que a presença da prima está ligada à estação, ao verão. Essa existência sazonal parece trazer uma completude à menina, que se diz suficiente com o amigo Dodo (Lakdhar Dridi) ao mesmo tempo em que revela alguma carência – seja em sua relação com Sofia, seja na aproximação com Philippe (Benoît Magimel).

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Com tanto a demonstrar e dizer, a diretora pode parecer um bocado displicente em contar uma história, o que pode trazer algum tédio ao resultado. Isso porque, além de ser um trabalho que tem uma narrativa clássica, ao mesmo tempo busca fazer fluir cada momento como único, como se as próprias sensações fossem histórias avulsas. Há, então, a narrativa do amadurecimento de Naïma e, paralelamente, os fenômenos que a presença de sua prima traz – assim como as manifestações naturais vindas com o verão em Cannes.

No final das contas, cada personagem – inclusive Sofia – deixa um pedacinho de si para a construção de Naïma. Esta, em formação, tem a sorte de esbarrar com um sujeito como Philippe, que a vê como uma criança mesmo quando ela tenta agir diferente disso, mas também tem a felicidade de ter a prima que tem. Não por aprender a ser como ela – algo que definitivamente não acontece –, mas por começar a perceber que ela pode ser o que quiser: gazela, fruto proibido, planta carnívora... contanto que esteja consciente e madura o suficiente para suas escolhas; contanto que seja respeitada.

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E, não alcançando esse respeito, que seja uma leoa em pele de cordeiro mesmo, porque inverter os papéis de sexo no cinema talvez funcione bem para, no mínimo, incomodar. Poderia Deus – ou a representação de quem se julga como sua imagem e semelhança – expulsar o próprio fruto do Éden? Ou será que, ao provar, ele sentiu que a criatura pode ser superior ao criador e, com medo, fugiu?

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech