Crítica | A Jornada desmascara um mal com sonhos e o maior amor do mundo
Por Sihan Felix |

Pode ser difícil não pensar em questões atuais – e históricas – durante A Jornada. Talvez seja impossível, a menos que se esteja estruturalmente alocado em um universo protegido por um campo de força socialmente impenetrável. Isso porque a roteirista e diretora Alice Winocour, ao contrário de investir a discussão do seu filme em camadas de subtexto, prefere trazer tudo para o primeiro plano. Por isso, do mesmo modo que faz o recente Luta por Justiça (de Destin Daniel Cretton, 2020) ao expor o racismo, A Jornada surge em tom de denúncia de algo que, de tão repetido, parece ser natural, normalizado. E essa normalização, enfim, é justamente o que Winocour expõe.
Mulher-mãe e homem-pai
Além disso, Dillon é um especialista em interpretar personagens, no mínimo, pedantes, como em A Casa que Jack Construiu (de Lars von Trier, 2018). Seu Mike, então, se já possuía uma complexidade particular no relacionamento com esposa, filhos e trabalho, acaba por receber mais camadas com o trabalho do ator, que naturaliza e faz parecer normal até mesmo os comportamentos mais reprováveis. Ao tentar, por exemplo, diminuir a carga do treinamento de Sarah, suas expressões seguras e seu jeito de falar podem ser tão perigosamente convincentes quando a justificativa de preocupação – que menospreza a competência dela (de Sarah) pelo fato de ela ser uma mulher.
Essa dinâmica, aliás, acompanha A Jornada do início ao fim. Winocour não quer fazer uma denúncia para além do que já se sabe ou do que já se tem como comum. É essa estrutura que pode fazer o filme, de alguma forma, ter um resultado morno. Simultaneamente, é essa mesma condição que dá tanta validade ao todo e abre espaço para subtextos que estão à mercê das condições socialmente desiguais entre mulher-mãe e homem-pai.
Sonhos
Mesmo assim, o mesmo filme que desenha o machismo para que ele possa ser entendido, de fato, como estrutural e excludente é, também, sobre amor e sonhos. Green não é menos do que impressionante quando precisa demonstrar emoções internas que parecem sempre em ebulição, transbordando em seus olhos e em seu corpo como feridas abertas. O carinho que ela tem por Stella (Zélie Boulant) é quase palpável. Ao mesmo tempo, às vezes pode chegar um momento em que uma lição prática sobre a vida torna-se necessária.
Partindo para, enfim, realizar um sonho que tem desde criança – algo que o roteiro faz questão de dizer e a direção de ressaltar –, Sarah demonstra à filha que não é por ser mãe que você, necessariamente, precisa abandonar um sonho. Se crianças aprendem muito com o exemplo, a menina que vê a mãe sendo lançada em um foguete está passando por um momento simbólico: ela está entendendo que sua mãe, mulher, foi atrás dos próprios sonhos – tornando-se uma estrela (o que é bem visual) – e que ela (Stella) pode e deve, sim, ir atrás dos seus próprios. Mas antes, naquele instante, ela deve contar com o pai, que a carrega nos ombros.
*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech