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Crítica | A Jornada desmascara um mal com sonhos e o maior amor do mundo

Por| 29 de Junho de 2020 às 08h33

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Pathé
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Pode ser difícil não pensar em questões atuais – e históricas – durante A Jornada. Talvez seja impossível, a menos que se esteja estruturalmente alocado em um universo protegido por um campo de força socialmente impenetrável. Isso porque a roteirista e diretora Alice Winocour, ao contrário de investir a discussão do seu filme em camadas de subtexto, prefere trazer tudo para o primeiro plano. Por isso, do mesmo modo que faz o recente Luta por Justiça (de Destin Daniel Cretton, 2020) ao expor o racismo, A Jornada surge em tom de denúncia de algo que, de tão repetido, parece ser natural, normalizado. E essa normalização, enfim, é justamente o que Winocour expõe.

Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

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O homem para fundamentar uma construção geral 

Por mais que a exposição temática seja clara desde o princípio, a atenção aos detalhes e – o que é melhor – a utilização deles fundamentam o trabalho da diretora. Ela não está somente preocupada em construir um tratado sobre o quanto as mulheres são estruturalmente menosprezadas em algumas profissões que, culturalmente e erroneamente, são taxadas de masculinas. A atenção de Winocour está voltada para as sensações e emoções causadas por essa disfunção social.

Assim, o tratamento machista recebido por Sarah Loreau (Eva Green) é mantido com a maior naturalidade desde o princípio, quando o pai de sua filha (interpretado por Lars Eidinger) parece menosprezar a sua aparição durante uma reunião em que ele participa. Nesse sentido, é de uma sensibilidade fora do comum que a diretora consiga causar incômodo com algo que em nada foge do comum. Isso se deve, claro, a uma escolha perfeccionista de planos, a uma decupagem que tem atenção especial em fundamentar essa normalidade e, ao mesmo tempo, expor as diferenças entre os mundos feminino e masculino.

Por essa perspectiva, nesse primeiro encontro, Winocour pensa as imagens de uma maneira que, na prática, antagonizam Sarah e a personagem de Eidinger. Nunca colocando-os em um mesmo plano, a diretora, por algumas vezes, mostra a reunião com homens falantes e opinadores e uma mulher mais ao fundo e que nada fala e, na sequência, revela Sarah sozinha, do lado de fora da sala – que tem paredes transparentes –, assistindo a tudo e, talvez, tão sem poder de opinião quanto se estivesse participando internamente. Algo parecido ocorre no terceiro ato do filme: quando Sarah, já em quarentena, recebe a visita da filha e do pai desta, uma parede de vidro os separa. Sem escutar o ex-exposo, ela o dispensa e resolve dar voz à filha, pedindo que ela fale qualquer coisa, querendo escutá-la. O plano de Winocour não separa as duas personagens. Durante toda a cena, ambas permanecem dentro do enquadramento e, quando Stella se aproxima, seu reflexo a coloca ao lado da mãe.

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A separação ou a união de personagens pensada imageticamente pela diretora está a todo momento cedendo interpretações, como quando, ao se despir e se vestir no vestiário do treinamento, a personagem de Green é mostrada com muita sensibilidade, de perfil e seminua, enquanto Mike Shannon (Matt Dillon) recebe um tratamento frontal um tanto ambíguo. Nesse ponto, não existe a certeza se Shannon está incomodado por haver uma mulher praticamente despida no mesmo cômodo e ele não poder fazer nada ou porque está controlando instintos. A questão é sempre mais humana e pessoal do que social em A Jornada. Ali – e em todo o filme – não se trata de um comentário geral intrínseco à condição de ser homem, mas é sobre o quanto ser homem e a relação com o sexo oposto fundamentam, exatamente, comentários gerais.

Mulher-mãe e homem-pai

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Além disso, Dillon é um especialista em interpretar personagens, no mínimo, pedantes, como em A Casa que Jack Construiu (de Lars von Trier, 2018). Seu Mike, então, se já possuía uma complexidade particular no relacionamento com esposa, filhos e trabalho, acaba por receber mais camadas com o trabalho do ator, que naturaliza e faz parecer normal até mesmo os comportamentos mais reprováveis. Ao tentar, por exemplo, diminuir a carga do treinamento de Sarah, suas expressões seguras e seu jeito de falar podem ser tão perigosamente convincentes quando a justificativa de preocupação – que menospreza a competência dela (de Sarah) pelo fato de ela ser uma mulher.

Essa dinâmica, aliás, acompanha A Jornada do início ao fim. Winocour não quer fazer uma denúncia para além do que já se sabe ou do que já se tem como comum. É essa estrutura que pode fazer o filme, de alguma forma, ter um resultado morno. Simultaneamente, é essa mesma condição que dá tanta validade ao todo e abre espaço para subtextos que estão à mercê das condições socialmente desiguais entre mulher-mãe e homem-pai.

Sonhos

Mesmo assim, o mesmo filme que desenha o machismo para que ele possa ser entendido, de fato, como estrutural e excludente é, também, sobre amor e sonhos. Green não é menos do que impressionante quando precisa demonstrar emoções internas que parecem sempre em ebulição, transbordando em seus olhos e em seu corpo como feridas abertas. O carinho que ela tem por Stella (Zélie Boulant) é quase palpável. Ao mesmo tempo, às vezes pode chegar um momento em que uma lição prática sobre a vida torna-se necessária.

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Partindo para, enfim, realizar um sonho que tem desde criança – algo que o roteiro faz questão de dizer e a direção de ressaltar –, Sarah demonstra à filha que não é por ser mãe que você, necessariamente, precisa abandonar um sonho. Se crianças aprendem muito com o exemplo, a menina que vê a mãe sendo lançada em um foguete está passando por um momento simbólico: ela está entendendo que sua mãe, mulher, foi atrás dos próprios sonhos – tornando-se uma estrela (o que é bem visual) – e que ela (Stella) pode e deve, sim, ir atrás dos seus próprios. Mas antes, naquele instante, ela deve contar com o pai, que a carrega nos ombros.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech