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Crítica | A Arte de Ser Adulto tenta entender a vida e se entrega ao banal

Por| 07 de Julho de 2020 às 08h47

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Universal Studios
Universal Studios

Algumas passagens da vida funcionam como que para nos transformar no que somos. O tempo tem o poder de moldar uma personalidade, mas alguns momentos dentro da linha temporal parecem fazer justamente o tempo parar. Com o tempo parado, a vida pode acabar por se entregar a esse instante e ficar presa a ele. O trabalho de Judd Apatow em A Arte de Ser Adulto parece entender essa associação, mas, simultaneamente e pouco a pouco, rende-se a um ritmo esquemático e a uma relação de causa e efeito que minimiza a força do filme… mesmo que prolongando a sua duração.

Atenção! Esta crítica contém spoilers sobre o filme!

Pertencimento

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Inicialmente, o roteiro de Apatow e dos estreantes em longas-metragens Pete Davidson (com traços de sua vida) e Dave Sirus fundamentam com propriedade Scott, o protagonista interpretado por Davidson. Aliás, a visão do diretor domina com muita consistência o texto e cede um ritmo consistente. Dessa maneira, o primeiro ato do filme consolida a personagem de Davidson com naturalidade. Ele administra antidepressivos, tem deficit de atenção, tem um desconforto social que o faz ter uma postura tida como rebelde… tudo está ali e nada indica um esquema utilitarista de acontecimentos. Scott é o que ele é e, dessa forma, é apresentado.

Ainda, sua vida junto aos amigos, nesse princípio, talvez beba de Os Boas Vidas (de Federico Fellini, 1953), um clássico do cinema italiano. Nele, Fellini, a partir de um roteiro dele mesmo e de Ennio Flaiano (de 8 ½), estuda o caráter de cinco jovens em momentos decisivos de suas vidas em uma pequena cidade na Itália. Por essa perspectiva, pode ficar claro que Apatow consegue deixar as situações fluírem com uma naturalidade felliniana, sem julgamentos e muito mais interessado na mente do seu protagonista.

Nesse sentido, tudo é um tanto ameaçador e de uma tristeza claustrofóbica: visitas a orfanatos abandonados, diversão em uma praia deserta – com direito à irresponsabilidade de tatuar uma criança. É como se aqueles personagens buscassem algum pertencimento e encontrassem, em locais sem vida e inocentes, onde sorrir sem serem oprimidos. Nesse sentido, a fotografia de Robert Elswit (de Arranha-Céu: Coragem Sem Limite) consegue fundamentar a ideia claramente pessimista de Apatow com uma luz difusa meio morta, sendo até mesmo os raios do sol – que atingem os personagens na praia – amenizados por nuvens cinzas e, obviamente, descoloridas.

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A vida...

É uma pena, portanto, que o O Rei de Staten Island (como o filme também vem sendo chamado no Brasil – em tradução literal do original) siga em frente e, pouco a pouco, os elementos que foram utilizados para a solidificação de Scott transformem-se em premissas para uma desconstrução esquematizada. Por essa perspectiva, Apatow deixa de se importar com o estudo niilista que estava sendo feito por meio do protagonista e abraça uma relação de causa e efeito banal. Nesta, parece não importar tanto, por exemplo, o sentimento de ter um pai morto aos sete anos de idade e passa a valer mais a motivação necessária para aceitar um novo bombeiro (Bill Burr) em sua vida e na vida de sua mãe (Marisa Tomei).

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As ações, a partir do segundo ato, passam a existir somente para que o seguinte passo seja exposto. Não se trata mais de uma intromissão corajosa na mente de um jovem traumatizado; é, enfim, sobre como essa mente claramente demolida pode ser erguida com facilidade, basta ser expulso de casa e encontrar um lugar todinho seu (o quartel dos bombeiros no caso) – nada que uma boa lavagem de banheiro não resolva.

O foco, tanto de Apatow quanto do roteiro, em um instante, passa a ser a evolução de Scott. Não que isso seja inválido, mas parece existir uma quebra entre a força inicial do filme e esse abraço tão forte nas soluções hollywoodianas. A personagem de Burr é vista sendo um herói, o próprio Scott salva uma pessoa (com um grau de afetação parecido com o dele mesmo); em uma conversa de bar, ele escuta histórias sobre o pai, humanizando o super-homem de suas lembranças; amigos são presos… Assim, as situações existem para transformar o protagonista rapidamente em uma pessoa melhor, o que, na prática, torna cada uma delas narrativamente pobre.

Mas pode não haver nada de errado nisso. Deixar-se entregar a essas convenções pode ser que funcione – inclusive aqui em A Arte de Ser Adulto. O problema está em se apresentar de uma forma, flertar com um molde de personalidade, construir uma relação tanto narrativa quanto visual apegada a um tempo e, de repente, buscar a resolução de tudo. Esquecer ou, no final das contas, nem saber que Scott não é o que é porque passou por aqueles problemas, mas sim apesar de ter passado por eles é o caminho mais fácil.

Felizmente, por mais que os dois últimos atos tenham esse esquema mais raso, os minutos finais tentam retornar ao princípio de tudo. Talvez para lembrar que a personagem de Davidson está ali – sempre esteve – e, na última cena, engrandecido pelo plano em contra-plongée e visualizando o céu ainda cinza, mas mais iluminado, ele (Scott) pode ter outra vida. Para Apatow, ela (a vida) parece muito mais fácil do que é.

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*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech