Malévola: Dona do Mal quase não justifica sua existência
Por Sihan Felix |
Quando uma receita dá muito certo, geralmente ela é copiada à exaustão ou, no mínimo, utilizada muitas vezes. O exemplo mais claro disso no cinema talvez seja a Marvel, que viu sua fórmula dar certo em Homem de Ferro (de Jon Favreau, 2008) e, com o passar dos anos, foi acrescentando tempero e engrossando o caldo, até chegar em Vingadores: Ultimato (de Anthony Russo e Joe Russo, 2019) com o termo Fórmula Marvel cunhado e consolidado. Claro que, no caminho, um ingrediente a mais ou a menos parecia indicar que tudo poderia desandar. Mas a mão de ferro da empresa invadia a cozinha e acrescentava uma pitada de um condimento diferente, então tudo se renovava.
A Disney – que tem a Marvel Studios como subsidiária –, já havia realizado alguns live-actions no final do século passado, mas resolveu investir em novos ingredientes em suas receitas após a falta de sucesso e, com isso, surgiram os filmes repaginados, as histórias com modificações e reimaginações. Nada como chamar um diretor inventivo como Tim Burton para essa retomada, que veio com Alice no País das Maravilhas (2010).
O problema é que o resultado não foi exatamente como esperado e, então, a empresa assumiu os projetos como a sua subsidiária. Se por um lado isso renderia alguns bons filmes, como Mogli, O Menino Lobo (de Jon Favreau, 2016) e outros bem sensíveis como Christopher Robin: Um Reencontro Inesquecível (de Marc Forster, 2018) e deixaria escancarada a habilidade de recriar dos roteiristas, por outro revelaria que a empresa pouco sabe fazer em questão de continuidade (algo que é o alicerce da Marvel no cinema).
Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!
Os medalhões salvando o roteiro
Malévola: Dona do Mal, enfim, pode se encaixar justamente neste perfil. O roteiro de Micah Fitzerman-Blue, Noah Harpster (ambos de A Beautiful Day in the Neighborhood) e Linda Woolverton (do citado Alice no País das Maravilhas) parece perdido na ideia de expansão da vilã repaginada no filme de 2014; é como esticar uma massa que seria para uma pizza brotinho até ela ficar do tamanho gigante. É tudo esticado ao máximo, mesmo sem ter mais para onde ir; cada decisão imposta pelo texto é previsível e quase descartável.
Resistir ao descarte, aliás, é algo que fica para os momentos finais, quando, enfim, Malévola (Angelina Jolie) é alçada a uma categoria mitológica. Sua alma (e não somente) de fênix é tão bem-vinda quanto bonita de se ver, ainda mais em se tratando de um ser tão machucado durante os dois filmes. O renascimento é de uma força emblemática, como se aquele ser – representado pela personagem de Jolie – fosse uma metáfora para quem resiste, para toda resiliência possível de ser encontrada no amor e na luta por causas justas.
Jolie, por sinal, é uma presença fundamental para que Malévola: Dona do Mal tente ser um filme válido. Até mesmo quando o roteiro parece querer afundar seu trabalho em um humor incondizente – quando a indicar sua breve aula de expressões faciais com Diaval (Sam Riley) –, a atriz consegue transformar a situação um tanto quanto kitsch em algo a ser pensado. Se a receita está ruim, Jolie é, aqui, uma espécie de bom azeite, que empresta mais sabor sempre que está em cena.
O problema é mesmo o roteiro, que, além da sua total previsibilidade – do pedido de casamento à descoberta da maldade da Rainha Ingrith (Michelle Pfeiffer) por Aurora (Elle Fanning) –, está bem indisposto a um trabalho minimamente complexo. A própria Rainha Ingrith, que teria peso para ser um contraponto fundamental na relação entre Aurora e o Príncipe Philip (Harris Dickinson), é logo pintada como vilã da história. O que tinha potencial, então, para ser um embate familiar onde o público poderia ceder algum investimento emocional, acaba em uma jogo pobremente maniqueísta.
E é de se estranhar que a personagem de Pfeiffer seja tão rapidamente vilanizada em um filme que traz um ser feminino como a Dona do Mal (ou Amante do Mal em tradução livre do título original). Felizmente, por esse lado, Pfeiffer é certeira ao atuar em um modo totalmente caricato, exagerando nas expressões – e uma risada clássica de bruxa má pode até fazer falta para ela. É como se a atriz entendesse seu papel por um lado muito mais de expor o quanto é desagradável a sua vilanização (especialmente extrafilme).
Uma boa tentativa se for vista como tropeço
A direção do norueguês Joachim Rønning (do excelente Expedição Kon Tiki, 2012), por sua vez, para além de dar liberdade ao elenco (especialmente aos medalhões Jolie e Pfeiffer), conduz tudo em um piloto automático tão sonolento quanto tedioso. Há um tipo de linha inquebrantável entre o seu trabalho e o que a Disney se dispõe a ter como resultado. É como se Rønning pensasse em um ritmo mais lento e a empresa insistisse em algo ágil e épico. O resultado é uma vitamina sonolenta e sem gosto que encontra vocação para massa de crepe no meio do terceiro ato, quando a guerra é iniciada. Nesse sentido, para um filme que prega a união entre os povos, a harmonia e a paz, uma sequência violenta (com muitas mortes por esfarelamento inclusive) ser o que há de mais interessante em quase duas horas de duração é preocupante.
A verdade (nunca absoluta) é que Malévola: Dona do Mal é uma continuação que pouco diz de diferente, pouco expande e pouco acrescenta além de novos bichinhos fofinhos e com mais destaque. Alguns planos que são emolduráveis de tão bonitos – graças à iluminação da fotografia de Henry Braham (de Guardiões da Galáxia Vol. 2) –, as presenças de Jolie e Pfeiffer e um final épico não justificam a existência do filme. Mas a tentativa, se for vista como um tropeço, pode ser bem válida. Resta saber se a Disney descobrirá qual foi o ingrediente que fez tudo desandar.