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Crítica | Vozes e o terror da irresponsabilidade com a história

Por| 01 de Dezembro de 2020 às 19h20

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Quem me conhece e/ou lê minhas críticas sabe que é muito fácil eu defender ou encontrar pontos positivos em um terror. O filme precisa ser realmente muito falho para que eu não consiga encontrar pelo menos um ponto que valha a pena, o que também é um exercício de compreensão com qualquer filme, porque sei o quão difícil é tirar uma obra do papel. Vozes é desses filmes de terror que nos irritam pelo excesso de jump scares desnecessários ou mal-empregados e que poderia ser apenas mais um título a ser esquecido, não fosse o vespeiro no qual o roteiro toca.

É normal que muitos filmes comecem bem ou razoavelmente e só depois, quando o espectador mais resiliente está em um ponto no qual prefere ir até o fim, é que tudo começa a desandar. O péssimo e absurdamente raso início de Vozes pode ser, então, um presságio de que ficaria muito pior, ofensivo inclusive.

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Não acredito na arte pela arte, o que significa dizer que também não acredito que um filme seja apenas um filme. Mesmo que a única intenção seja entreter, é responsabilidade do(s) roteirista(s) pensar todas as dimensões e implicações dos seus personagens, garantindo que nenhum deles esteja representando algo que não esteja de acordo com as suas crenças.

Para entender isso, proponho um exercício: imagine um fantasma atormentado assombrando qualquer habitante de uma casa. É ele ou ela? De onde veio? Por que tanto ódio? Como ele ou ela mata suas vítimas? Por que dessa forma? Ao responder essas e outras perguntas é pouco provável que o escritor e, mais especificamente, o roteirista não coloque nesse personagem parte de suas crenças. Usemos isso para pensar em Vozes.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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A história de fantasmas...

Sem o background (a realidade na qual Vozes se sustenta e da qual falarei depois), a história de fantasmas também não se sustenta. Logo no início, o filme mostra-se raso com uma tranquilidade preocupante ao mostrar uma sessão entre Eric (Lucas Blas) e uma psicóloga. Em pouquíssimo tempo a profissional criada assume que as vozes que a criança escuta são apenas efeitos psicossomáticos causados pela mudança de local. Tudo bem ela não supor que a criança estava ouvindo algo sobrenatural, mas ela nem sequer considera a possibilidade de uma condição como ilusão auditiva ou distúrbio psicótico. Pior: ela nem sequer se interessa pelos desenhos da criança, uma das principais ferramentas de psicólogos infantis.

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Isso é apenas o início. O que se segue é uma série de concatenações falhas, com diálogos pouco verossímeis e um insistente uso de jump scares que não dão folga ao espectador, forçosamente pego de sobressalto pela técnica. É importante ressaltar que o jump scare é um recurso válido se bem utilizado, mas o emprego recorrente dessa técnica indica uma provável falta de criatividade da equipe, que não conseguiu pensar em formas mais interessantes de causar susto e/ou medo.

Há, felizmente, alguns bons momentos ao longo do filme, algumas construções competentes de tensão, como quando a mãe de Eric retorna à casa e alterna entre a visão abaixo e acima da cama, em um macabro pique-esconde com a fantasma. Em termos de atuação, Ramón Barea, intérprete do pesquisador Germán, parece ser a única peça convincente da produção e é quem acaba cativando o espectador ao ponto de não torcermos por sua morte como se estivéssemos diante de um slasher.

É raro também ver uma montagem tão descaradamente problemática e capaz de criar erros de sequência tão nítidos e que poderiam ser evitados justamente pela montagem. Por outro lado, o filme consegue a façanha de fazer um fechamento cíclico através da própria montagem de uma forma bastante louvável: Vozes é aberto com uma imagem aérea em que vemos a bola vermelha na piscina e é encerrado com uma nova imagem aérea, dessa vez mostrando o pai de Eric na piscina, formando o ponto vermelho no local da bola conforme a câmera se afasta.

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A bola, inclusive, é uma belíssima referência à O Iluminado e, desde a sua aparição na sequência de abertura, já pode ser aguardado pelos fãs da obra de Stanley Kubrick o momento em que essa bola avermelhada virá rolando de uma forma misteriosa. Expectativa essa que se concretiza nos momentos finais de Vozes.

… não é apenas uma história de fantasmas

O espírito que atormenta a casa ganha camadas ao longo do filme. Desde O Grito estamos acostumados com a ideia de que mortes traumáticas podem fazer uma alma ser tomada pelo ódio e a recente série A Maldição da Mansão Bly explorou bastante bem essa ideia. Nesses casos, geralmente entende-se que aquele mal puro teve origem em algo que não era unicamente mal, uma pessoa comum. Nos casos em que o mal existe sem justificativa, entende-se que seja algo demoníaco, ou seja, de essência má. E nenhum ser humano é essencialmente mau.

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Vozes, ao criar sua vilã a partir de um exercício muito mais rebuscado que aquele que convidei a fazer, conseguiu criar uma vilã unidimensional: uma bruxa, que é entendida como maligna, tendo sido terrivelmente torturada pela inquisição justamente por isso. Uma bruxa, conclui rapidamente Germán, só morre através do fogo e é essa a saída que o roteiro encontra para que os personagens se livrem da tal entidade. Não há um aprofundamento da personagem, não há nem sequer uma justificativa através de alguma forma de possessão demoníaca.

O roteiro de Vozes simplesmente assume que as bruxas eram criaturas malignas e incorpora nas entrelinhas da sua história a ideia de que a maldição só existiu porque os inquisidores não foram até o fim e não queimaram o seu corpo. O filme, no entanto, é espanhol e não tem desculpas para criar uma história como essa.

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A Inquisição teve lugar em diversos continentes, mas não é à toa que os livros de história deleguem um espaço especificamente para a Inquisição Espanhola, conhecida por ser a mais cruel. Estima-se que mais de 40 mil mulheres foram assassinadas pela Inquisição, um verdadeiro genocídio executado a partir da alegação de que muitas dessas mulheres seriam bruxas. Qual a intenção de roteiristas espanhóis ao reacenderem esse estigma? Estão querendo nos dizer que a Inquisição Espanhola estava certa?

Se eles não tinham nenhuma má intenção, o que também é possível, o roteiro segue igualmente ruim, demonstrando que pouca ou nenhuma pesquisa foi feita para a construção do universo do filme. O fundamento em fato histórico exige dos criadores responsabilidade histórica. Os jump scares, no entanto, são rentáveis e funcionam como cortina de fumaça para uma mensagem amarga.

Ah! E aos interessados em uma continuação, há cenas pós-créditos.

Vozes está no catálogo da Netflix.

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Com informações: Nerdologia História

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.