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Crítica | Um Lindo Dia na Vizinhança é parte do legado emocional de Mr. Rogers

Por| 27 de Janeiro de 2020 às 09h53

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Sony Pictures
Sony Pictures

Quando vemos um filme, qualquer filme, corremos o incrível risco de sermos tocados por ele, por qualquer coisa: trilha, algum diálogo, a história, os personagens, um único plano... Se nos permitirmos essa abertura diante de qualquer obra, podemos ser pegos de surpresa a qualquer momento. Às vezes, um filme nos toca de tal forma que toda a trama se torna quase irrelevante diante de um único momento, como se todo o filme tivesse sido construído em prol daqueles segundos de epifania que acabamos de experimentar.

Não é necessário que o filme seja uma obra-prima para que isso aconteça e é realmente possível que experiências assim ocorram em qualquer momento no qual somos espectadores. Apesar de muito sensível, Um Lindo Dia na Vizinhança está longe de ser um filme memorável por qualidades técnicas, mas certamente terá seu lugar na minha memória por muito tempo pelo modo como me tocou com algo tão simples.

A diretora Marielle Heller, embora não tenha títulos muito reconhecidos em sua filmografia, conseguiu fazer um filme tão sensível que toca até mesmo quem não conhece Fred Rogers, ou seja: a esmagadora maioria dos brasileiros. Ainda assim, o filme estreou nos nossos cinemas, porque Fred Rogers poderia ser, inclusive, um personagem fictício: é completamente desnecessário conhecer a figura real para se deixar tocar.

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Atenção! A partir daqui a crítica pode conter spoilers.

Do particular ao universal

É muito comum que filmes biográficos ou que tangenciam biografias fisguem um público mais ou menos restrito aos conhecedores daquela figura. Se dependesse disso, Um Lindo Dia na Vizinhança nem sequer seria lançado no Brasil, uma vez que muito do filme é criado em torno da figura de Fred Rogers, um apresentador de programas televisivos infanto-juvenis que foram ao ar entre os anos 1968 e 2001, englobando diversas gerações de espectadores.

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O longa, no entanto, não se coloca como um filme biográfico, no sentido de nos contar os principais momentos da vida de Fred Rogers, pelo contrário, ele é quase um coadjuvante no próprio filme, abrindo espaço para o desenvolvimento do personagem de Matthew Rhys, o jornalista Lloyd Vogel. Com isso, Marielle Heller opta por mostrar o que há de mais significativo sobre Rogers, seu verdadeiro legado e aquilo que mais o representa: sua sensibilidade, empatia e responsabilidade afetiva.

Havia muito a se falar sobre o profissional Fred Rogers: sua ascensão, sua enorme carreira e outras ocupações que tinha ao longo de todos esses anos, até 2003, quando faleceu em decorrência de um câncer no estômago. Certamente seria possível construir um roteiro mais tradicional, mostrando sua genialidade e, em contrapartida, seus problemas pessoais (como sua relação com os filhos, sobre a qual comenta muito brevemente em Um Lindo Dia na Vizinhança). Seria possível explorar também seus últimos momentos, sua morte e como ele, que ensinava sobre isso para um público infantil, lidou com a própria situação.

Os roteiristas Noah Harpster e Micah Fitzerman-Blue optaram por um viés completamente diferente e acertaram tremendamente em inserir o filme dentro de um episódio apresentado por Mr. Rogers. É a partir daí que Rogers demonstra a importância do outro na sua vida: sentamos para assistir a um filme sobre a vida de uma pessoa, mas ela começa a nos contar a vida de outra pessoa.

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Relações

Marielle Heller dá vida ao roteiro de uma forma incrivelmente sensível. Este não é um filme de imagens grandiosas e cenas arrebatadoras por sua complexidade, o que não significa que não tenha profundidade. Ainda que a direção seja bastante comum, tem seus momentos de genialidade.

Além de abrir o filme com um falso episódio do programa de Rogers, fragmentos da maquete que fazem uma versão em stop-motion da “vizinhança” são inseridos ao longo do filme indicando que a obra como um todo, assim como o programa televisivo, tem algo de substancial a nos ensinar.

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A prova mais contundente disso é o momento em que, após ter uma espécie de surto seguido de desmaio, Lloyd acorda na casa de Rogers, que o leva para comer em um restaurante. Lá, o diálogo que se desenrola a partir do momento em que Lloyd se identifica como “quebrado” (broken) é dos momentos mais belos da produção. Rogers não só argumenta que mesmo o que consideramos ruim nas nossas vidas também é parte de nós, porque nos faz ser quem somos no presente, mas convida seu interlocutor para um exercício de um minuto: pensar em todas as pessoas que nos amaram desde o nosso nascimento. E aqui eu já falo na terceira pessoa do plural, porque somos diretamente incluídos na cena a partir de uma das quebras de quarta parede mais acolhedoras que já vi (uma vez que o recurso geralmente é utilizado para causar alguma espécie de mal-estar ou como um recurso humorístico/crítico).

Tom Hanks, Mr. Rogers

Nada disso seria tão marcante se não fosse o excelente trabalho de atuação de Tom Hanks, que consegue dar ao personagem camadas que passam pelo personagem diante das câmeras, o personagem simpático fora do set e, em raros momentos, um Rogers muito mais taciturno.

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Tom Hanks incorpora a Mr. Rogers algo semelhante ao questionamento sobre o palhaço: se o palhaço faz os outros rirem, quem faz o palhaço rir? No caso de Um Lindo Dia na Vizinhança, Tom Hanks parece deixar claro que, embora tenha um tremendo prazer ao ajudar o próximo, ele mesmo tem problemas e lida com eles de maneiras distintas, como ao tocar as notas graves do piano enquanto as luzes se apagam, dando ainda mais profundidade ao personagem mesmo nos últimos minutos de filme.

Um Lindo Dia na Vizinhança é um filme biográfico que tenta levar o legado pessoal de Mr. Rogers adiante: ajudar o próximo, fazer as pessoas refletirem sobre a própria vida e, sobretudo, não temer ser vulnerável.