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Crítica | Trama Fantasma usa os erros da obsessão para falar dos acertos do amor

Por| 23 de Março de 2020 às 09h53

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Universal Pictures
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Gosto muito de alguns romances, mas tenho a sensação de que a maioria, mesmo alguns dos meus preferidos, ao invés de retratarem, o amor, retratam suas facetas mais superficiais, fúteis e, por vezes, chegam a ser irreais como um conto de fadas. Particularmente, acho os últimos bastante nocivos, pois alimentam o desejo por algo irreal. No que diz respeito a amor, meus favoritos são todos filmes que me fizeram chorar, como Amor (Michael Haneke, 2012) e O Lagosta (Yorgos Lanthimos, 2015).

As lágrimas, no entanto, não são pela história em si (o que já seria o suficiente), mas por uma obra de arte que me faz entender que a realidade do amor é aceitar com prazer também o sofrimento. Amor implica sacrifícios, dores e uma gama de sentimentos indesejados a longo prazo, significa aceitar muitas coisas que, sem o amor, não aceitaríamos. E com isso não estou falando de relacionamentos abusivos, gostaria de deixar claro: sofrer, aqui, está no sentido de coisas que são inevitáveis, como ver o outro sofrer, como abrir mão de algo em prol do outro... um amor que extrapola o âmbito do romance, um amor que é livre de hierarquias, o amor de uma amizade verdadeira entre duas pessoas.

Esse amor de uma amizade, que, romântica ou não, implica aceitar a ideia de “na alegria e na tristeza, na saúde e na doença”, pode a qualquer momento sofrer distorções, que é justamente o que leva aos relacionamentos abusivos (inclusive entre amigos). Às vezes não há uma divisória clara entre o que é saudável e o que não é, daí a necessidade de autorreflexão constante nos relacionamentos. Trama Fantasma (disponível no Amazon Prime Video) entrou para a minha lista de filmes sobre amor e, assim como os exemplos citados, não é um filme com o qual devemos alimentar nossas esperanças.

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  • Os lançamentos do Amazon Prime Video em março de 2020

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

A forma

Paul Thomas Anderson traz um roteiro repleto de diálogos que exaltam o estereótipo britânico ao serem inteligentes, sarcásticos e polidos, além de calmos, afiados e que escondem uma verdade desagradável como convém à classe social dos personagens. As atuações, e é praticamente uma tautologia destacar o desempenho de Daniel Day-Lewis, vivem uma relação de mutualismo com os primeiríssimos planos: o duplo sentido de muitos diálogos só são denunciados por pequenos vislumbres de pensamento que mudam sutilmente os olhares dos atores, detalhes que, mesmo sendo quase imperceptíveis, podem atingir o espectador com a mesma intensidade poética de uma flecha que atinge um peito.

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Com figurinos impecáveis, que renderam à Trama Fantasma o Oscar da categoria, Paul Thomas Anderson não apenas faz um resgate histórico de roupas do período, mas invoca uma ideia de moda que foi sufocada pelo consumismo. Moda é arte, é uma expressão artística do mesmo modo que o é uma pintura, uma música ou um filme. Reynolds Woodcock é um artista, com direito a excentricidades que tornam possíveis as estereotipações da figura de gênio.

A modelo, aqui, é como a parede na qual o quadro é pendurado ou o equipamento em que uma música é reproduzida. Ainda que haja algum comentário acerca de uma modelo que está ganhando peso e, portanto, esteja tornando-se inadequada para os vestidos de Woodcock, é possível levar em consideração que essa é uma discussão contemporânea e o filme é ambientado nos anos 1950, quando as mulheres estavam sob outra configuração social. Ainda assim, Anderson abre espaço no roteiro para o questionamento dos padrões de beleza: Vicky Krieps (Alma), que via com maus olhos várias partes do seu corpo, é confrontada pela visão de Woodcock, que considera o corpo de Alma perfeito. Ao contrário do cenário macabro da moda que conhecemos, no qual modelos são obrigadas a se enquadrarem em medidas específicas, Trama Fantasma resgata o valor da subjetividade do gosto. Alma é perfeita para Woodcock, mesmo com características que para outras pessoas seriam consideradas como defeitos. Aqui entra a primeira questão sobre o amor e concordo com Valter Hugo Mae quando ele diz que amar é, sobretudo, amar também os defeitos.

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O figurino, que traduz o estado mental dos personagens com a mesma sutiliza que as atuações, está em completa harmonia com a direção de arte e com a fotografia. A paleta de cores de cada sequência de Trama Fantasma parece ter sido pensada para contar as entrelinhas do roteiro, dos tons frios que representam o distanciamento e a personalidade de Woodcock aos quentes que sempre envolvem Alma. A fotografia lida com luzes e brancos de um modo que a claridade, assim como os personagens, parece sempre usar o máximo da sua polidez, evitando qualquer agressividade.

O mesmo não se passa com a trilha, que não se destaca com um tema, mas transforma intimamente as imagens. As notas graves das cordas e os pizzicati conferem ao filme um ar de terror: ainda que pareça um "felizes para sempre" doentio, é a trilha sonora que indica o tempo todo que essa não é uma relação saudável.

O conteúdo

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Woodcock define a si mesmo como um solteiro convicto, incurável, pois casar o tornaria falso, ou seja, faria com que deixasse de ser ele mesmo. Ele acaba casando com Alma e talvez outra lição do roteiro seja a de que as relações humanas podem evoluir de uma forma completamente inesperada e imprevisível (embora tecnicamente a direção de arte já tenha dado todas as pistas de que um romance viria a se desenvolver entre os dois, sobretudo pela utilização do vermelho).

O roteiro é completamente contraintuitivo quando, após ter sido uma vez envenenado por Alma, Woodcock percebe que será novamente envenenado e ainda assim come os cogumelos. O diálogo é assustador, sobretudo quando Alma diz que ele não vai morrer, mesmo desejando que isso aconteça. Assim como qualquer filme, Trama Fantasma também pode ser percebido de diversas formas por pessoas diferentes e uma das interpretações que faço é a de que Anderson traduziu os horrores (aceitáveis) do amor em atitudes absolutamente condenáveis, semelhante ao que fez Darren Aronofsky em Mãe! (2017).

Embora obviamente a relação de Woodcock e Alma não represente um ideal de relacionamento, com material de sobra para lacanianos falarem sobre a anulação do Outro, ainda vejo algo de saudável para extrair da relação deles. O Woodcock solteiro via a si mesmo como forte e parecia completamente inabalável, impondo suas vontades sobre as dos demais, tendo a si como centro de tudo. Suas “fraquezas” são expostas justamente quando é envenenado pela primeira vez e, embora estranho, não é surpreendente que o pedido de casamento surja depois disso.

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Enfim casados e após um período de ajuste, o casal desenvolve a relação obsessiva em que precisam desses momentos de “fraqueza” de uma doença induzida. É indiscutível que isso é repreensível, repito, mas coloco fraqueza entre aspas porque leio um discurso sobre vulnerabilidade nas entrelinhas. É como se Woodcock se recusasse a ser vulnerável e Alma o fizesse ser à força. Os cogumelos o tornavam vulnerável não só fisicamente, mas traziam à superfície a vulnerabilidade necessária para que qualquer relacionamento funcione. Amor é também estar disposto a se abrir, ser verdadeiro consigo mesmo e com o outro.

Woodcock parece não saber se envolver e, por isso, inicialmente aceita e vive a alcunha de solteiro incurável. Ao casar-se, ele não sabe como agir, o que é perfeitamente representado pelo diálogo sobre os aspargos: devemos ser sinceros, mesmo que isso machuque quem amamos, ou devemos ser polidos para não machucarmos a pessoa amada? A segunda opção é ser falso não somente com o outro, mas também consigo mesmo.

O processo de tornar-se vulnerável não é fácil: pode ser doloroso, demorado e todo apoio é sempre bem-vindo, como cada um dos episódios em que Woodcock estava sofrendo os efeitos do que ingeriu. É muito importante lembrar que é somente na ficção que o errado pode ser certo: na busca pela minha vulnerabilidade, quem me guiou não foi um relacionamento abusivo e obsessivo nem cogumelos venenosos, mas sim um psicólogo. A arte é indispensável, mas muitas vezes precisa ser visitada com prudência.