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Crítica | Sob a Pele do Lobo – Sobre a pele do Homem

Por| 01 de Agosto de 2018 às 12h05

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Netflix
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É estranho assistir a filmes que poderiam ser ditos como difíceis ou, ainda, que não são para todo mundo e pensar nisso com superioridade. Incomoda imaginar que esses pensamentos possam ser reais. Primeiro porque qualquer dificuldade em presenciar algo é relativa a uma formação particular: enquanto será difícil para alguns assistir a 2001: Uma Odisseia no Espaço (já diria Julinho: “Nave muito lenta!”), para outros assistir a Transformers: O Lado Oculto da Lua é uma tarefa dolorosa. Isso não é mérito ou demérito para qualquer um dos lados.

E é engraçado que se possa pensar nessa dificuldade a partir de um filme que trata, justamente, do ser humano, da crueza, do quanto se é um animal – algo que se esquece com facilidade. Sentir-se superior à base do velho ego é algo intrinsicamente humano. É esse ego que, muitas vezes, transforma adoradores de Kubrick em caçadores daqueles que gostam dos filmes de Michael Bay – revelando uma superioridade tão frágil quanto mentirosa.

Antes de seguir adiante, cuidado! Esta crítica pode conter spoilers.

Um pequeno tratado antropológico

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Dessa forma, Sob a Pele do Lobo(disponível na Netflix) se mostra como um pequeno tratado antropológico, um filme que não está disposto a romantizar e traçar uma história agradável. É uma obra bem direta em seus propósitos, apesar das quase duas horas com pouquíssimos diálogos. E é exatamente na ausência de falas que o roteirista e diretor estreante Samu Fuentes constrói a mensagem, sempre auxiliado pela direção de fotografia impecável de Aitor Mantxola. O cinefotógrafo confere uma beleza contrastante à natureza selvagem e, com luzes sóbrias, auxilia na construção dos personagens nas cenas internas, unindo-os ou afastando-os a depender do que se passa.

Para seguir a vida de um homem que vive no alto das montanhas de uma região de inverno mais do que rigoroso, Fuentes não se preocupa em lhe ceder um passado, em construir um background para que se possa compreender as suas atitudes. Isso porque aquele homem não é a personificação de um homem, mas do Homem. Assim, entender o que se passa não é uma questão de roteiro, mas de tendência natural. Percebe-se, portanto, o quanto se pode ser bárbaro quando não se está cercado de regras socioculturais e quando se é privado de relações interpessoais.

Ainda, vale a interpretação de que o filme não discute uma época específica, não contém um discurso histórico. O que se passa é do ontem e do hoje, alheio ao tempo e ligado a questões humanas em si. Dito isso, a personagem de Casas é a personificação do instinto. Percebe-se, por exemplo, a sua expressão quando escuta a ideia de ter um filho e o quanto aquilo lhe afeta. Mais à frente, os gritos de sua primeira mulher – prestes a morrer – são entrecortados por uma cena dele cuidando de um cabritinho recém-nascido com um carinho desproporcional à sua monstruosidade até então. É interessante perceber, também, que seu ímpeto sexual é levado à quase nulidade quando descobre uma gravidez.

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Estupro marital e o preconceito disseminado pelo anonimato

De fato, ao retirar o tom de estudo do filme, vê-se diversas vezes o que hoje é sabiamente conhecido como estupro marital – o ato sexual como uma obrigação no contexto do casamento. Se por um lado escancara a bestialidade daquele homem, por outro é doloroso de assistir.

Mas Fuentes opta por esse lado sofrido sem cerimônia e reforça sua opção através de atitudes das mais animalescas, como a cena em que o homem demonstra que o que vale, para ele, é reproduzir, utilizando cuspe para acelerar o processo. O diretor, dessa maneira, faz questão de evidenciar que nenhuma relação sexual ali é uma questão de prazer, jamais permanecendo na cena até o gozo e, somente, construindo, com brutalidade, os gemidos cavalares dele entre os gemidos de dor delas.

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Sob a Pele do Lobo é, sim, um filme fácil, mas é fácil para quem estiver disposto a entender quem se pode ser caso haja um abandono de uma tão preciosa evolução social. Isso porque o ser humano é um animal não tão difícil de virar uma besta – vide as relações bizarras de preconceito de todas as espécies e como é mais fácil demonstrá-las quando se está sozinho, atrás de um anonimato ou diante da internet.

Aquele homem – interpretado brilhantemente por Mario Casas (do excepcional Um Contratempo) –, que se tornou quase um bicho devido ao isolamento, que tem sua vida transformada a partir do momento em que resolve ter alguém ao seu lado e que surge como uma fera atrás da bela pouco antes de descobrir que será pai, não é nada mais (e é tudo isso) do que uma personificação da realidade, é como O Enigma de Kaspar Hauser (filme de Werner Herzog adaptado de um livro de Jakob Wassermann) talhado pela sobrevivência.

"O Homem é o lobo do Homem"

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Ao final, quando ela recebe o consentimento dele para ir embora, suas lágrimas não são de felicidade, são um misto de desesperança e medo. Com os dias curtos do inverno e o auge do frio, seu lamento anuncia o fim. Ao longe, os urubus concretizam a morte – dela, por jamais chegar ao pé da montanha, e dele. E a lágrima que escorre daquele homem não é por saber que morrerá em breve, mas por perceber que jamais cumprirá a sua missão animal de procriar.

“O Homem é o lobo do Homem.” – Thomas Hobbes