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Crítica | Os Mortos Não Morrem porque nós somos eles

Por| 13 de Setembro de 2019 às 13h55

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Universal Pictures
Universal Pictures

“Um animal selvagem? Vários animais selvagens?”

Abandonar uma forma é, provavelmente, mais difícil do que abraçar conteúdos variados. A forma define a essência, aquilo que pode vir a se tornar uma assinatura, um jeito único de ser lembrado. Já os conteúdos são moldáveis, encaixam-se a mando e desmando de quem os detém. O diretor Jim Jarmusch, porém, após o romance literalmente poético Paterson e o documentário íntimo Gimme Danger sobre a banda de proto-punk The Stooges (ambos de 2016), demonstra um desapego quase convincente ao que construiu durante sua carreira ao descartar, em uma primeira visão, sua marca autoral.

Assim, Jarmusch, que também roteirizou Os Mortos Não Morrem, cria uma fábula com um humor muito peculiar – que pode dividir opiniões –, capaz de, sarcasticamente, debochar de políticas segregacionistas, expor as grosserias do governo em situação nos EUA e cutucar a influência do consumismo na sociedade.

Nesse sentido, a dinâmica criada por Jarmusch alimenta uma apatia quase irritante e, ao mesmo tempo, cômica. É esse humor, capaz de deixar o espectador sorrindo sem entender exatamente o que está acontecendo, que acaba por enriquecer o filme. A impressão é de que a falta de complexidade dos personagens é balanceada pela tentativa de, justamente, precisar dizer algo por meio de toda a inércia.

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Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!

Para o que a existência moldou

A tentativa de inserir uma mensagem mais clara do que nos seus filmes anteriores constrói uma gama de metáforas que respondem à vida de forma cínica: Se os personagens agem como se fossem o reflexo do comentário social sobre, de fato, viver-se de maneira moribunda – escravos de costumes e vícios –, as suas não-atitudes é que carregam o significado do título. Isso porque não é difícil perceber quão mortos já estão Cliff e Ronnie (Bill Murray e Adam Driver respectivamente) quando, além de suas atitudes rasas e de seus passeios sem função pela pequena e pacata Centerville, conversam sobre o próprio roteiro do filme – em uma metalinguagem longe de ser gratuita.

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A partir da primeira constatação, vinda de Ronnie, de que tudo está escrito, Os Mortos Não Morrem recebe uma camada extra, como se cada personagem fosse, para além de peças de um roteiro criado e guiado por seu diretor (o que é óbvio), uma alegoria ao próprio sistema (extrafilme). É interessante perceber, a partir desse ponto, que as atitudes dos zumbis vão além do clássico “brains” ou da degustação de carne humana. A questão é que todos passam a ser hipérboles do que eram enquanto vivos – ou enquanto mortos em vida –, sendo direcionados àquilo para o que a existência os moldou.

Em meio a essa profusão de compreensões, há alguns detalhes que podem causar desconforto, por mais que sejam escolhas intencionais de Jarmusch: Os “hipsters” encabeçados por Zoe (Selena Gomez) que chegam à cidade, hospedam-se em um motel e morrem, sem que seu arco faça diferença ao filme; os adolescentes do reformatório que têm a história inteiramente abandonada sem uma tentativa de buscar uma explicação... Tudo que poderia ganhar algum peso dramático parece ser repelido, como se a ideia inicial de transformar o todo em uma grande demonstração de a vida como ela é acabasse por ser algo mais particular.

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Quem destruiu a poesia do mundo

Ao permanecer no limite entre uma perspectiva mais ampla e outra mais íntima, Os Mortos Não Morrem parece disposto a se colocar no mundo sem pretensão alguma. Se por um lado isso pode ser corajoso e resultar em uma arte-entretenimento acima da média, por outro as repetições quase exaustivas de situações e do desânimo podem insinuar uma inércia – tal qual a dos personagens – do próprio Jarmusch, como se ele não se sentisse disposto a trabalhar melhor os arcos do roteiro e estivesse focado muito mais no conceito e na mensagem do que na história.

No final das contas, Bob (o ermitão – interpretado por Tom Waits), que é louco aos olhos de Centerville e mostrado assim para o público desde a abertura, deve ser o mais racional (ou sábio), Cliff e Ronnie – tão centrados – os mais entregues a uma existência insignificante e Jarmusch, consciente ao inicialmente abandonar sua forma, conseguiu encontrá-la à distância. Abusando de referências – como ao clássico A Noite dos Mortos-Vivos (de George A. Romero, 1968) –, brincando com obviedades e exagerando no cinismo, o diretor, sempre tão peculiar, assinou não como o fez com a intimidade de Paterson (um motorista-poeta), mas como quem pergunta quem, afinal, destruiu a poesia do mundo.

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“Um animal selvagem? Vários animais selvagens?” Ou, na verdade, boa parte de nós mesmos, morta demais pelo sistema e, por isso, incapaz de enxergar a gravidade de políticas segregacionistas, grosserias vindas “de cima” e a influência do consumismo na sociedade. Talvez, como sugere Os Mortos Não Morrem, para aqueles que estão conformados ou passivos demais só reste, despretensiosamente, aguardar o apocalipse.

Ou, como o faz Zelda Winston (Tilda Swinton – repare na combinação de letras que é quase um anagrama completo), voltar para o planeta de onde veio.