Crítica Os Fabelmans | Sobre a arte (e a necessidade) de produzir sonhos
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira |
O sonho, a arte e as memórias compartilham uma raiz em comum: o encantamento, o olhar mágico para nossas próprias vivências e que diferenciam um acontecimento comum daquele que vai para sempre nos acompanhar. É o modo como encaramos e absorvemos essas experiências que nos definem como indivíduos, como Os Fabelmans faz questão de ilustrar de forma bastante sensível e significativa.
Afinal, o filme nada mais é do que um recorte das memórias de Steven Spielberg, mostrando não apenas como ele se apaixonou pela arte, mas como a transformou a sua vida e a de sua família. Só que mais do que ser apenas um delírio egocêntrico, o longa entrega em belíssimo elogio ao espírito lúdico e ao poder do cinema em nosso imaginário.
A partir de suas próprias recordações, um dos maiores diretores de todos os tempos nos fala sobre a importância de sonhar como forma de nos conhecermos melhor, uma janela mágica que nos permite ver novos mundos ao mesmo tempo em que olhamos para os sentimentos. E isso não poderia ser feito de uma forma tão delicada quanto a de um gênio expondo a sua própria história.
Uma fábula pessoal
Apesar de nenhum dos personagens existirem de verdade, Spielberg já deixou bem claro o quanto Os Fabelmans é sobre sua relação com o cinema. Só que mais do que apenas mostrar como um jovem garoto judeu se encantou pela tela grande e pelo seu poder de nos fazer sonhar, ele demonstra essa capacidade a partir da fragilidade de sua própria família.
Por isso mesmo, mais do que o próprio Sam (Gabriel LaBelle), a família Fabelman é a grande protagonista da trama. É a partir da relação do jovem e da dinâmica envolvendo seus pais que a gente passa a entender o quanto a arte é um fator fundamental não só para a vida do diretor, mas para a própria existência humana.
Isso é muito bem representado na relação entre Bart (Paul Dano) e Mitzi (Michelle Williams), os chefes da família Fableman e que representam muito bem essa imagem da família perfeita americana — exceto por um único ponto. Apesar do amor quase devocional que eles têm um pelo outro, pai e mãe enxergam o mundo de formas completamente antagônicas.
Ele é aquela figura pragmática, o homem da ciência que acredita que tudo deve ser olhado de forma literal e racional — o que faz com que toda e qualquer explicação que ele venha a dar pareça uma palestra interminável. Do outro lado, a mãe é uma pianista que largou a música para se tornar dona de casa, mas que nunca abandonou o olhar mágico e fantástico diante de qualquer coisa.
Essa oposição que eles fazem é fundamental para que Sam encontre seu próprio caminho. E isso começa a partir da sua primeira ida ao cinema, quando ele vê a grande tela pela primeira vez e entende que o cinema nada mais é do que a capacidade de colocar o sonho na palma da sua mão — algo que o filme apresenta de forma literal em uma das cenas mais bonitas do longa.
Ao mesmo tempo, Os Fabelmans coloca na figura desses pais a importância do próprio cinema como essa válvula de escape para o fantástico. A tensão da trama não está nas dificuldades de Sam em construir sua carreira, mas em como a arte é vital em nossas vidas tanto como forma de externalizar sentimentos quanto para absorver emoções.
Isso fica bem claro na figura da própria Mitzi, que começa pouco a pouco a se degradar à medida que o fantástico desaparece de sua vida. Embora ame o marido, o cientificismo não lhe é mais suficiente e ela passa a buscar novas formas de viver essa magia que a vida comum lhe tomou. Nesse sentido, a atuação quase destoante de Michelle Williams casa muito bem com essa energia da personagem, que parece não pertencer ao mesmo mundo dos demais personagens.
Em paralelo, o próprio Bart vai muito além de ser apenas alguém frio como uma tabela de Excel. Embora ele jamais se dobre ao olhar mágico da esposa, fica claro o quanto sua devoção por Mitzi é uma forma de completar aquilo que lhe falta. Ele sempre viveu esse encantamento por meio dela.
E é no meio desse caminho que se encontra Sam. Ou, melhor dizendo, é nesse encontro de dois mundos que reside o poder do cinema. A arte de produzir sonhos é tanto a válvula de escape dos criativos como o alimento para aqueles que têm fome de fantasia.
Não por acaso, o filme carrega essa característica em seu título. Fabelmans nada mais é do que uma brincadeira com a palavra fábula (fable, em inglês), o que já evidencia tanto a dependência desses personagens do lúdico em suas vidas como a própria capacidade de Sam de usar a arte para entender e até inspirar o mundo à sua volta.
Isso é bem presente no ato final, quando o garoto faz um filme de despedida da escola. O que deveria ser apenas um registro de uma ida dos veteranos à praia vira um misto de diferentes emoções, empolgando alguns, sensibilizando outros e abalando um outro tanto na mesma medida — mostrando como a arte é capaz de expressar diferentes faces de nós mesmos.
Para além do cineasta
E um dos maiores feitos de Os Fabelmans é trazer esse discurso tão bonito a partir de memórias do próprio roteirista e diretor do filme sem cair em armadilhas que tornem tudo piegas ou prepotente. Embora seja um filme feito inteiramente sobre o próprio Spielberg, em nenhum momento fica a sensação de essa ser uma obra egocêntrica de um artista que se vê maior que a própria obra. Pelo contrário, o longa é feito de puro coração.
Ainda que seja impossível fugir da impessoalidade das experiências do autor, você percebe sua genialidade quando ele transforma a própria vida em uma fábula para falar de algo que é muito maior do que ele próprio — o poder do cinema. O resultado é um dos melhores trabalhos do diretor em anos e que mostra por que ele merece ter seu nome gravado na história da arte.
Inspirador do começo ao fim, Os Fabelmans é mais do que um filme que merece ser visto no cinema. Ele é, na verdade, um belo lembrete também do porquê nós amamos tanto essa fábrica de sonhar.
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