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Crítica | Obsessão: Michael Myers no esqueleto de uma boneca Susi

Por| 18 de Junho de 2019 às 18h41

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Galeria Distribuidora
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Está bem descrito e detalhado na quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (o DSM-V), o transtorno obsessivo-compulsivo. O TOC (e já fica a recomendação da ingênua comédia espanhola Toc Toc, de Vicente Villanueva), como foi popularizado, caracteriza-se especialmente (e em resumo) pela presença periódica de pensamentos e comportamentos compulsivos.

Do mesmo modo que abrir e fechar os cadeados de uma grade por três vezes antes de dormir, a obsessão ou compulsão pode ser por uma pessoa, tratando-se da necessidade intrusiva de ver, tocar, ter, subjugar... separadamente ou tudo ao mesmo tempo. Assim como parte dos distúrbios psiquiátricos (como a depressão), os portadores de TOC ainda sofrem preconceitos, frequentemente sendo pejorativamente chamados de loucos e sendo afastado do convívio social comum.

Há filmes que tratam esse transtorno de formas sérias, como o talvez já clássico Louca Obsessão (de Rob Reiner, 1990) e o sensibilíssimo brasileiro Para Minha Amada Morta (de Aly Muritiba, 2017). Outros, como o citado Toc Toc, procuram a leveza e tentam não se arriscar ou se aprofundar.

Cuidado! A partir daqui esta crítica pode conter spoilers!

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Ladeira abaixo sem rodinhas

Obsessão, por outro lado, é completamente desequilibrado no que deseja e irresponsavelmente indeciso. Se a primeira cena tenta, sem muito sucesso, trazer alguma leveza por meio de um diálogo constrangedor entre Frances (Chloë Grace Moretz) e sua amiga Erica (Maika Monroe) – algo como a utilização de aspargos na bunda –, a sequência do primeiro ato tem até algum grau de sedução, visto o tratamento quase erótico na construção do clima entre Frances e Greta (Isabelle Huppert), antecipado pela dita conversa embaraçosa entre as amigas que dividem apartamento.

O diretor Neil Jordan parece deixar-se contaminar por aquele que talvez seja seu filme mais festejado, Entrevista com um Vampiro (de 1994). Há toda uma preparação, mesmo que seja malfeita (ou quase isso), para o encontro da protagonista com sua antagonista. Seja na música cantada por Julie London (Where are You – bem condizente inclusive) ou nos planos detalhes da bolsa no metrô; seja da mão de Frances tocando aquele objeto com alguma delicadeza ou em sua ingenuidade à la Claudia (personagem da pequena Kirsten Dunst no filme vampiresco).

Chega a ser, portanto, interessante como tudo começa a ruir a partir do primeiro encontro entre as duas. Poderia ser um caso metalinguístico, no qual o próprio filme começa a se decompor ao mesmo passo da dissolução de uma relação romântica. Seria uma tentativa válida se fosse o caso. Mas, dos diálogos propositalmente melosos – que só revelam a idealização superficial do “nunca me abandone” – às atitudes estabanadas de alguém perseguida por uma stalker, cada cena se esforça para desconstruir o pseudo-universo criado inicialmente (mesmo com os tais aspargos) e destruir qualquer possibilidade de verossimilhança. Sem conseguir sedimentar um universo próprio e sem encaixar Obsessão no real, Jordan dá a impressão de estar guiando um filme a esmo, descendo uma ladeira inclinada calçado com um par de patins que vai perdendo as rodinhas a cada 10 metros.

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Michael Myers, Clark Kent e Susi

É intrigante perceber como o filme, acima de tudo, pode funcionar como comédia a uma primeira vista. O diálogo sobre ser grudenta como chiclete, ao ser dos mais bregas, encaixaria perfeitamente no grau meloso e romântico que Obsessão procura em seus momentos iniciais, mas, ao ser repetido à exaustão – chegando ao cúmulo de Greta cuspir um chiclete no cabelo de Frances –, acaba por ser um dos ápices da comédia involuntária e constrangedora que cresce ladeira abaixo.

Jordan, supostamente, tenta elevar o nível de suspense ao transformar a personagem de Huppert em uma espécie de Michael Myers, explicitando isso ao quase replicar uma das cenas clássicas de Halloween: A Noite do Terror (de John Carpenter, 1978) e posicionar Greta observando Frances primeiramente de longe, do outro lado de uma rua movimentada. Mas o plano não tem qualquer elegância do carpenteriano e logo se dissolve em tentativas sofridas de jump scares.

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Junta-se a tudo, um roteiro absorto em si mesmo, que pode acreditar (ou tentar fazer que o público acredite) que cada personagem em cena é capaz de ter ou saber utilizar sedativo injetável (até certo ponto é válida a explicação de Greta ter sido enfermeira) ou de ser tolo o suficiente para cair na lábia de uma mulher claramente doente. E, como doente, vale voltar a citar o transtorno obsessivo-compulsivo (com suas ramificações) e o tratamento indigno que o texto, do próprio Jordan e de Ray Wright (do péssimo Pulse), cede à doença.

Aliás, a utilização do sedativo por parte de Erica só não é tão questionável quanto à sua aparição misteriosa para salvar a amiga. Como Clark Kent esconde atrás dos óculos a sua identidade de Superman, a moça loira esconde a sua atrás de uma peruca preta, conseguindo enganar uma mulher que, pelo que tudo indica, é das maiores experts em existir sem ser percebida, em trocar de identidade, em enganar das formas mais tolas quem aparece para lhe interrogar.

Se Carpenter, há quase quatro décadas, trouxe ao mundo um personagem rico – a própria encarnação do mal – como Myers, a dupla de roteiristas aqui escrevem Greta como se ela fosse uma tosca. Há, de fato, tentativas de incursão em suas motivações, mas qualquer aprofundamento é deixado de lado em prol das tentativas de demonstrar o modus operandi de uma assassina (ou quase isso) serial. Até mesmo pedir silêncio aos “vizinhos” e eles, sendo as vítimas, atendendo o encarecido pedido por mais que o barulho fosse salvá-los, é revelado com uma naturalidade assustadora (e isso está longe de ser um elogio).

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No entanto, em dados momentos, é relegada a Greta uma chance de ser relacionada a uma entidade sobrenatural: quando persegue Erica como se fosse uma assombração e quando, próximo ao fim do filme, torna-se a única a levantar após receber uma dose do dito sedativo. Neste caso, somente para imprimir alguma ação à cena e novamente o efeito bater e a apagar pela segunda vez. É uma autossabotagem de Jordan e Wright com as próprias relações de causa e efeito. É como resgatar Michael Myers e transformá-lo em uma boneca Susi.

Romantismo gótico sem alma

Obsessão é daqueles filmes que tentam ser tudo e, ao mesmo tempo, fazem um esforço hercúleo para serem nada. Mas há méritos claros nas atuações de Huppert (sempre entregue) e de Moretz (expressiva e com suas costumeiras mordidas nos lábios que só reforçam o romantismo e o erotismo inicial) e na fotografia acolhedora do sempre competente Seamus McGarvey (de O Rei do Show), que abraça as personagens em uma dança morna, dissolvendo a profundidade de campo quando para unir Frances e Greta e sendo regada à música de Liszt – compositor justamente do período romântico.

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É relativamente curioso compreender que Liszt, biograficamente chamado de "Bruxo", tenha uma de suas três peças que formam o compêndio Liebesträume (Sonhos de Amor – em tradução livre) utilizada no filme apenas como pretexto para contextualizar ocasiões tolas – como o dito e redito romantismo e um sofrido pesadelo dentro de outro (que é a realidade – é quase como um A Origem, de Christopher Nolan, tratado sem qualquer maturidade) que engana duplamente o público e, novamente, autossabota qualquer crença nos 98 minutos de filme.

Por citar A Origem, há uma semelhança sofrível, com Obsessão demonstrando sua busca para ser relevante até o último segundo. Enquanto o final do filme de Nolan traz o mistério do totem de Cobb (Leonardo DiCaprio) – o pião muito bem embasado anteriormente e que tem o poder de revelar o que é verdade e o que é sonho –, aqui o mistério é uma bobagem: uma pequena Torre Eiffel (em alusão à mentirosa nacionalidade da personagem antagonista – e verdadeira no caso de Huppert) que pode ou não segurar uma fechadura que trancafia Greta. 

Finalmente, Obsessão é, enfim, uma dúvida. Como bem arrematou João Victor Wanderley, “é um filme perdido, incapaz de unir suas boas ideias com coesão. O que deveria ser uma brincadeira estilística, deixa a sensação de que três pessoas diferentes dirigiram o longa simultaneamente.”

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Três pessoas diferentes e arqui-inimigas, eu diria; prontas para sabotar umas às outras até criarem uma criatura de Frankenstein genérica. É um filme cheio do romantismo gótico de Mary Shelley, mas esvaziado de alma e, por fim, esquecível (se superar for uma possibilidade).

*Crítica dedicada à colega e amiga Paula Pardillos (como um pedido de desculpas pelo convite à essa sessão)