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Crítica | O Grito transforma maldição em filme de zumbi

Por| 17 de Fevereiro de 2020 às 09h53

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Sony Pictures
Sony Pictures

Da franquia O Grito temos o clássico japonês de Takashi Shimizu, Ju-on (2003), e suas várias sequências, e o remake americano de 2004, estrelado por Sarah Michelle Gellar, novamente dirigido por Shimizu. Reviver a franquia não era exatamente um clamor dos fãs: ninguém estava pedindo por nada. Alguém simplesmente acordou algum dia achando que tinha uma ideia boa o suficiente para ignorar todo o cânone da franquia e fazer um filme completamente novo. Nasce, assim, O Grito (2020).

Ainda que possa ter estreado em Sundance com alguns louros, Nicolas Pesce perde toda a moral com filmes de terror ao assinar essa nova obra como diretor e roteirista. O Grito consegue ser ao mesmo tempo desrespeitoso com a franquia original, com os fãs e com o gênero em si, cometendo erros em níveis completamente diferentes. Para quem chega agora e tem o primeiro contato com a história, talvez seja decepcionante inclusive ser visto como mais um filme de terror despretensioso.

Atenção! A partir daqui a crítica pode conter spoilers.

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Ignorando o clássico

O cânone é iniciado em 1998 com o curta-metragem Katasumi y 4444444444, no qual são introduzidas as figuras do gato, do garoto e da mulher. Extraído do folclore japonês, Ju-on é uma maldição: quando uma pessoa morre sentindo extremo ódio, uma maldição nasce e toma a forma das vítimas, habitando o local onde elas viviam e se conectando com qualquer pessoa que passe por ali.

Diferente da assombração por não estar ligado ao local em si, a maldição Ju-on permite que, através da interação entre pessoas variadas, os ataques viralizem tendo como princípio apenas a noção de contato, como se fosse uma doença. Sendo assim, não é absurdo que uma pessoa consiga trazer a maldição do Japão para os EUA: Fiona Landers (Tara Westwood) estava amaldiçoada, não a casa em que trabalhou no Japão.

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Essa lógica se perde nos filmes O Grito, mesmo que não haja premissa para isso. Os personagens conseguem chegar à conclusão de que é uma boa ideia queimar a casa, mesmo compreendendo que há algo a ver com uma série de mortes misteriosas no Japão. Lógica, inclusive, é algo que não parece ser bem-vindo no roteiro desta nova versão de O Grito.

Esse não é um filme para encontrar o cânone repaginado, pelo contrário: quase tudo que faz de Ju-on um clássico é ignorado nesse reboot. A mulher, o garoto e o gato são descartados e substituídos por novos personagens que são completamente esquecíveis.

Saturação

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Não só de sustos vive um filme de terror, muito menos aqueles sustos que se sustentam apenas com jump scare (quando o susto é acompanhado de um som alto e repentino). Repito isso à exaustão. O terror vai muito além e tende a ser melhor quando lida com o medo muito mais do que com o susto.

O medo, por sua vez, pode ser de muitas coisas, mas quase todas elas têm a ver com algum ser indefinido, desconhecido, incompreensível... O não conhecimento, a ignorância do personagem geralmente é a maior fonte de medo, pois é muito mais assustador enfrentar uma força que é uma completa incógnita. É ainda mais difícil fazer um terror no qual o personagem tem medo justamente por saber o que está enfrentando.

De qualquer modo, ver fantasmas é aterrorizante para muitas pessoas. Por outro lado, imagine-se vivendo com visões constantes de fantasmas. Eles aparecendo o tempo todo, não lhe fazendo mal algum além do susto. Gosto de supor que nos habituaríamos com as visões, porque é justamente isso que ocorre com o espectador de O Grito: as aparições são tantas e tão constantes que os fantasmas/maldições perdem completamente a graça e passam a se tornar cômicos.

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Isso se deve não só ao excesso de aparições, mas também à direção que parece incapaz de criar momentos de tensão. O timing de reação dos personagens, sobretudo da Detetive Muldoon (Andrea Riseborough), é tão ruim que por vezes suas atitudes são completamente questionáveis, tirando o espectador de qualquer possibilidade de imersão. Esse problema do timing de reação poderia ter sido facilmente corrigido pelo departamento de edição (montagem), mas o fato de não ter sido resolvido levanta mais questionamentos sobre a competência do diretor.

O Grito chega a um ponto de saturação das aparições que me peguei com a sensação de estar diante de um filme de zumbi: deixei de ter medo dos fantasmas para passar a gostar de suas aparições de um jeito inesperado. Já sem medo, restava a apreciação estética da carne putrefata. Se o filme durasse um pouco mais, sairia da sala de cinema acreditando realmente ser um filme de zumbi.

Luzes

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Iluminação é uma característica essencial do terror, seja para manter tudo às claras – como fez O Iluminado (Stanley Kubrick, 1980) e Midsommar (Ari Aster, 2019) –, seja para brincar com as sombras, como faz a maioria, ou para criar um clima completamente autoral, como fez Dario Argento. Em um bom filme, vale lembrar, nada é aleatório.

O Grito tem uma fotografia que chega a ser tão desconfortável quanto o próprio roteiro (que tenta ser complexo, mas nada mais faz do que contar a mesma maldição em anos diferentes). Todas as histórias e linhas do tempo têm a mesma fotografia: a mesma luz amarela perpassa todo o filme e não se justifica.

Geralmente atrelado ao conforto, o amarelo por vezes pode indicar alerta (como o semáforo que, antes de ficar vermelho, passa pelo amarelo), mas nem mesmo essa possibilidade faz sentido em O Grito, porque todo o filme, em todos os núcleos, tem praticamente a mesma iluminação. Além da escolha duvidosa de temperatura de cor, ainda é possível observar que as fontes de luz são bastante improváveis: mesmo a casa tendo diversas opções de fonte de luz para justificar a iluminação do set de filmagem, a direção de fotografia opta por fontes que não fazem sentido algum senão criar os pontos de luz desejados, fazendo que a composição como um todo soe artificial.

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Não costumo dizer que algum filme é desnecessário, porque defendo que toda arte deve ser feita caso alguém sinta a vontade de fazê-la. Cinema, no entanto, além de arte, é uma grande indústria e durante os mais de 90 minutos de filme me peguei pensando mais de uma vez que outra pessoa faria melhor uso desse orçamento.