Crítica | Mistério no Mediterrâneo: sem a ajuda de aparelhos
Por Sihan Felix |
Adam Sandler parece ser aquele sujeito tranquilo, que não quer confusão com quem quer que seja, que está disposto a ajudar... o clássico bonachão. Durante a sua carreira, ele passou de comediante admirado na década de 1990 por ter seu jeito único – na mesma geração de Jim Carrey e Ben Stiller – a ator fadado a fracassos de crítica e divisores de público. Felizmente, enquanto ele produz e estrela filmes como Cada um tem a Gêmea que Merece (de Dennis Dugan, 2011) e The Ridiculous 6 (de Frank Coraci, 2015), também aparece em produções como Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe (de Noah Baumbach, 2017).
Ainda assim, até mesmo os seus filmes menos elogiados têm participações para lá de especiais: Al Pacino, por exemplo, está no dito filme de Dugan, e, em Mistério no Mediterrâneo, além do elenco bem recheado de estrelas (como Luke Evans, Gemma Arterton e Terence Stamp), a engajada e poderosa Charlize Theron é a produtora executiva – talvez comprovando o quão bacana é Sandler.
Cuidado! A partir daqui esta crítica pode conter spoilers!
Alguma torcida a favor
Mistério no Mediterrâneo é justamente uma espécie de materialização do que Sandler se concretizou com o passar do tempo. Ao passo que Carrey tornou-se um comediante (e não somente) em alguma medida sombrio e Stiller passou a ser relegado a filmes menos populares, Sandler permaneceu o mesmo. Suas produções quase sempre foram inofensivas, de um humor leve e despretensioso. Ao mesmo tempo, ele está permanentemente interessado em ter elementos sociais nos filmes que protagoniza, parecendo consciente de que cinema é arte e, como arte, é também uma ferramenta de discutir o mundo.
Nesse sentido, o roteiro de James Vanderbilt (de Independence Day: O Ressurgimento), cheio dos clichês necessários para marcar uma história de detetive, parece perdido na busca por comédia em meio a uma história que parece ter saído de um livro de Agatha Christie. Não bastasse o subordinado ser logo considerado o principal suspeito (como todo mordomo inicialmente o é), sem demora tudo descamba para uma clássica história sobre herança e vingança, com mortes em sequência que afunilam até a resolução do caso.
A questão é que, de fato, Mistério no Mediterrâneo pode divertir o espectador que se deixar levar pela sua falta de lógica interna. Se cada filme é um universo e, dentro de si, esse universo precisa funcionar e parecer possível (a tal da verossimilhança), essa produção da Netflix é muito o avesso disso – e em escala crescente. Enquanto Nick (Sandler) consegue se passar por detetive durante um bom tempo, enganando a esposa Audrey (Jennifer Aniston), sem demora ele compra passagens à Europa que prometia para ela há 15 anos. Tudo bem: classe econômica, tour de ônibus.
Mas Audrey conhece Charles Cavendish (Evans), sobrinho de um bilionário (Malcolm Quince – Stamp). O moço charmoso a convida – junto a Nick – para uma estada em um iate da família. Ainda assim, releva-se: o sujeito é um excêntrico e quer incomodar o tio, chamar estranhos para a embarcação da família nem é tão atípico (dizem). Porém é no iate que a situação ganha agravantes difíceis de serem relevados: uma morte fisicamente improvável da forma que foi (a menos que o peito da vítima fosse de manteiga ou algo do tipo), o experiente escudeiro (Coronel Ulenga – John Kani) que pressente o crime e atira no escuro, sem saber para onde está atirando e um vencedor piloto de Fórmula 1 que não fala minimamente inglês (Juan Carlos Rivera – Luis Gerardo Méndez).
Há alguma graça nessas situações, especialmente pela consistência que Sandler e Aniston dão a cada cena, conseguindo se passar sem muita dificuldade por pessoas de renda muito inferior com relação àquela família bizarra. E conseguem sem ofender. Esse é, provavelmente, o ponto alto do texto de Vanderbilt, que entende a boa comédia como uma forma de atacar os poderosos sem menosprezar ou ridicularizar os demais. Assim, Nick e Audrey são carismáticos o suficiente para, em plena crise na relação, contarem com alguma torcida a favor.
Arrepios intensos
O grande problema é que o diretor Kyle Newacheck (do fraco Perda Total, 2018) dá a entender que trabalhou com uma indisposição que o incapacitou de ligar pontos simples da história. Não que isso faça com que o filme fique difícil de se enteder – não teria como nem mesmo se picotassem as sequências e montassem de forma dadaísta (dado o roteiro bobo). O fato é que os planos surgem em um grau de aleatoriedade que nem mesmo dois dos filmes mais bizarros da carreira de Sandler (os citados Cada um tem a Gêmea que Merece e The Ridiculous 6) têm. Não há opções de linguagem que auxiliem em qualquer dramaticidade e muito menos no suspense durante a busca por quem matou Quince. Neste caso, planos detalhes fogem como o diabo foge da cruz, como se fossem eles mesmos os criminosos. A impressão é de que Newacheck pedia que o posicionamento da câmera captasse o elenco e nada mais, indiferente a qualquer tentativa de deixar o filme menos irrelevante.
O pior é que a ideia geral não era ruim. Unir a esperteza e o mistério de uma história à la Agatha Christie com o jeito inofensivo do que Sandler faz poderia resultar em algo até certo ponto original ou com alguma funcionalidade, mas a verdade (longe de ser absoluta) é que Mistério no Mediterrâneo demonstra que não há acordo entre as partes: O mistério faz a comédia perder a graça e a comédia faz o mistério perder relevância.
Para alguém como eu, que acredita no trabalho de Sandler; que o vê como um ator que já se provou muito além da fama (vide Embriagado de Amor, Reine Sobre Mim, o já exposto Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe e outros); que criou – como uma brincadeira (dado o status de indiferença ou de ame-o ou deixe-o que ele tem) – o bônus Adam Sandler em cada lista de melhores, constatar mais uma produção perto de sofrível protagonizada por ele é doloroso.
Até mesmo as tentativas, tão queridas pelo ator, de ser socialmente relevante são arremessadas na trama como se o roteirista estivesse sacaneando: Vou colocar qualquer coisa sobre ela ser cabelereira para ele menosprezar isso e causar uma intriga... e depois vou usar isso de trunfo. Chego a escutar Vanderbilt sussurrando isso no meu ouvido. E os arrepios são intensos por motivos de Acorde, criatura! Você tem toda uma carreira pela frente!
Devoção
No fim, a relação com a escritora inglesa criadora do fantástico detetive Hercule Poirot e a referência tornam-se bem evidentes (e visualmente direta antes dos créditos). Mas a história fica bem longe de fazer jus. É toda pinçada de maneira tonta de O Assassinato no Expresso do Oriente. E acaba clichê demais (longe de somente optar pelas convenções do gênero), honrando à falta de criatividade do título original Murder Mystery (Mistério do Assassinato em tradução livre).
No mais, para surpreender como todo filme de detetive que se preze, Mistério no Mediterrâneo pode divertir sim. Mas talvez seja necessária a disposição de colocar o cérebro no colo e fazer carinho nele como a um gatinho. É um exercício de muita devoção e que exige prática, mas que pode surtir, enfim, algumas risadas.
Eu acho que consegui. Com algumas sequelas, mas sem a ajuda de aparelhos.