Crítica | Midway - Batalha em Alto Mar tem problemas de dupla personalidade
Por Laísa Trojaike | •
Filmes sobre histórias reais ajudam a recontar a história (para melhor ou para pior). Desde o seu princípio, o cinema foi usado para contar histórias reais para um grande público e, apesar de dramatizadas, sabemos que muitos tomam o visto como real ou pelo menos como uma cópia fidedigna da realidade. Um diretor, portanto, deve estar ciente da responsabilidade que tem em mãos ao criar um novo registro de uma história, pois, ao recontá-la, ele está criando um novo documento: mesmo que não seja um documento sobre o evento em si, é um documento sobre como muitas pessoas interpretam um certo evento em uma determinada época.
Em se tratando de guerra, a situação é ainda mais delicada, dada a quantidade de camadas que esse tipo de acontecimento pode adquirir. Midway - Batalha em Alto Mar procura explorar pelo menos três camadas: a política que não suja as próprias mãos, os combatentes que estão à própria sorte e os civis que sofrem os efeitos colaterais simplesmente por estarem no lugar errado, na hora errada. Mas não aprofunda nenhuma dessas três esferas.
A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.
Lados
Midway - Batalha em Alto Mar tenta ser menos imparcial e menos propagandista que muitos filmes estadunidenses sobre a Segunda Guerra Mundial e inicia o filme mostrando que os japoneses haviam avisado que, em caso de suspensão do fornecimento de petróleo, haveria guerra. Ressaltam, ainda, que os EUA eram neutros até o ataque a Pearl Harbor. Ao final do filme, ainda prestam homenagem aos soldados dessa guerra dentro da guerra, sejam eles estadunidenses ou japoneses.
Embora muitos de nós já estejam cansados dos filmes de guerra que exaltam o soldado como grande herói infalível e protetor da pátria, algumas histórias ainda podem se permitir fazer isso, mas com cuidado: não se pode deixar de lado a ideia de que a guerra é um horror, não importa se você está do (suposto) lado certo.
O roteiro do estreante em longas Wes Tooke tenta mostrar que haviam japoneses que eram contrários às decisões do próprio governo, mas ignora a ideia de que o conflito que vai de Pearl Harbor a Midway estava inserido no contexto da Segunda Guerra Mundial, quando o Japão se torna aliado da Alemanha nazista e da Itália fascista. Roland Emmerich, por outro lado, mascara a morte: se a execução ou ferimento de cada soldado dos EUA é retratada como um martírio, as eliminações de japoneses são entendidas como meramente necessárias; enquanto os assassinatos de civis em território chinês são vistos através do olhar atônito de Jimmy Doolittle (Aaron Eckhart), o ataque a Tóquio é visto com tamanho distanciamento que somos capazes de esquecer que lá embaixo, onde explodem as bombas, pessoas inocentes estão morrendo por causa de uma estratégia militar.
Ignorar o contexto da Segunda Grande Guerra é também ignorar que o evento de Pearl Harbor foi o que levou os EUA a entrarem na guerra, culminando, posteriormente, nos terríveis bombardeamentos atômicos das cidades de Hiroshima e Nagasaki.
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Estética
Um assunto tão delicado não pode ser conduzido ao status de blockbuster de ação e entretenimento, mas é exatamente isso que acontece. Roland Emmerich, que já dirigiu Soldado Universal (1992), Independence Day (1996), Independence Day: O Ressurgimento (2016) e Godzilla (1998) tem um bom currículo quando se trata de fazer blockbusters grandiosos. Com outros filmes, tem um histórico de exaltar a bandeira do próprio país (o que justifica muito da discrepância com a qual japoneses e estadunidenses são tratados em Midway - Batalha em Alto Mar).
Muito além dos efeitos visuais bastante ruins, que deixam óbvio o chroma key, sobretudo na sequência do ataque a Pearl Harbor, é quase ofensiva a utilização do esquema de cores baseada em azul e laranja. Por serem cores opostas que chamam a nossa atenção, a combinação já é um clichê dos filmes de ação e tem a fama de guiar o olhar do espectador através do contraste. A utilização da técnica não diz muito por si própria, mas quando aplicada à uma tragédia real, soa descaradamente como monetização de uma situação que não deveria passar por isso e, portanto, soa muito como um patriotismo exacerbado ou como um desrespeito com o acontecido.
Figurões
O filme todo está recheado de grandes atores em grandes papéis: homens que deixaram seu nome gravado na história por suas ações ímpares. Infelizmente, o filme não é a biografia de nenhum deles, de modo que o roteiro, preocupado em desenrolar a história que conduz à vitória dos EUA em Midway, trata quase todos como meras peças em um tabuleiro. À exceção de Dick Best (Ed Skrein), que tem alguns momentos memoráveis em decorrência da sua personalidade, os demais personagens não ganham o destaque que poderiam ter tido nas mãos de um roteirista mais experiente.
Essa questão torna-se ainda mais óbvia a partir a inserção do personagem de Woody Harrelson, Chester W. Nimitz. É difícil compreender o que pode ter acontecido com o aclamado e premiado Woody Harrelson, que tem até mesmo um timing comprometido no diálogo em que descobre seu novo emprego. Ao longo dos acontecimentos, ele e outros atores não ganham espaço para deixar transparecer a grandeza de seus personagens.
Midway - Batalha em Alto Mar arrisca, inclusive, com a aparição de um alívio cômico: o diretor louco que se preocupa com as filmagens mesmo após ser atingido por um tiro é uma caricatura desrespeitosa do icônico John Ford, que, enquanto personagem, não é nada mais do que um acessório para deleite daqueles que conhecem essa personalidade.
A guerra entre EUA e Japão é uma grande história, com muitas camadas e muitos capítulos. A reprodução dessas batalhas é invariavelmente um deslumbre visual, mas a responsabilidade do cinema com a história jamais deve ser ignorada. Resta saber se Midway - Batalha em Alto Mar foi criado com um objetivo de espetacularizar a história ou se apenas caiu no azar de ter a história certa caindo nas mãos erradas.