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Crítica | Herança é Poderoso Chefão para crianças mimadas

Por| Editado por Jones Oliveira | 19 de Fevereiro de 2023 às 16h30

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Evito, na medida do possível, criar preconceitos e expectativas com os filmes que vejo, sobretudo quando se trata de uma obra sobre a qual preciso escrever. Muito antes de assistir a Herança, algo já me incomodava profundamente: o cartaz. Os materiais de divulgação dos filmes, sobretudo os pôsteres, são um dos meus prazeres pessoais e sou capaz de dedicar a essas peças a mesma admiração e tempo que dedico a qualquer obra de arte que me atrai.

Lembro da ocasião do lançamento do misterioso Rua Cloverfield, 10 (2016, Dan Trachtenberg) e de como achei a tipografia interessante, com as letras remetendo à ligação do bunker com a superfície (algo que ficou ainda melhor depois que assisti ao filme). O pôster de Herança pode ser uma referência (não irei acusá-los de cópia, até mesmo porque no mundo dos pôsteres isso é quase corriqueiro), mas certamente não tem a mesma força e, após assistir, ficou ainda mais fraco. Aliás, o pôster também lembra muito a arte de outro filme, o homônimo de Tyler Savage lançado em 2017.

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Lily Collins, por sua vez, é o segundo mau pressentimento com o filme. Desde que a vi pela primeira vez em Padre (2011) e, posteriormente, em Espelho, Espelho Meu (2012), a atriz passou a representar sinônimo de filmes ruins que almejam grandes conquistas e acabam frustrados. Com esse double check pessimista, a presença de Simon Pegg parecia, ao mesmo tempo, um oásis e um desperdício de talento.

Ainda assim, tentei manter a neutralidade ao máximo, mas os primeiros minutos de filme já conseguiram arruinar isso: antes de sabermos o que está acontecendo, somos submetidos a uma enxurrada de informações sobre mercado financeiro, política e problemas familiares complexos e não há tempo algum para digerir isso ou sequer entendê-las (até mesmo porque não adicionam quase nada à trama).

A sensação é de que a direção estava tentando me alimentar forçosamente com um volume absurdo de informações que, ela já sabia, não poderiam ser digeridas. E, voilà, praticamente um foie gras de espectador (para citar um prato que combina com os personagens: relativo à classe alta e completamente cruel e desnecessário).

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Atenção, a partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

Público alvo

Feliz ou infelizmente (não vou entrar nesse mérito), cinema é uma indústria e, como tal, vende um produto que quase sempre obrigatoriamente tem um público alvo. A direção de arte de Herança é muito clara, não somente na escolha dos ambientes, que condizem perfeitamente com a classe social da família, mas sobretudo na escolha de figurinos, que, ao mesmo tempo, parece ser um merchandising de grifes e um breve spoiler do rumo que a trama irá tomar.

Classe social dos personagens não é critério para determinar o público alvo, mas o modo como essa classe social é mostrada e as atitudes desses personagens certamente são. Pessoas que podem fazer um cheque de mais ou menos US$ 20 milhões como se fosse algo corriqueiro não são exatamente a maior parte da população mundial ou mesmo estadunidense, então ou o público alvo do filme é muito reduzido, ou o roteirista e o diretor precisam ralar muito para criar identificação entre personagens e audiência.

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Lauren Monroe (Lily Collins) a princípio parece ser uma pessoa boa em meio a uma família que esconde muitos segredos: um irmão possivelmente (e depois assumidamente) corrupto, uma mãe socialite que só se preocupa com a imagem da família e um pai recém-falecido que deixa justamente para ela a pior das heranças, que acaba desenterrando (inclusive literalmente) muita sujeira.

Família em primeiro lugar é um dos grandes ensinamentos de uma das maiores trilogias da história do cinema, O Poderoso Chefão, mas, apesar de qualquer admiração que possamos desenvolver pelos Corleone, não há dúvidas morais, afinal, se trata de uma máfia e, como tal, sabemos que são criminosos apesar de todo código de ética interna que eles tenham desenvolvido.

Os Monroe estão muito longe dos Corleone, muito mais próximos dos Underwood de House of Cards, com a diferença de que não podemos admirar a sagacidade macabra dos Monroe como acontece com Frank e Claire.

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Herança tem, no final das contas, um argumento de mistério que daria um excelente filme sobre o dilema entre defender a família e fazer a coisa certa, mas acaba sendo apenas um suspense recheado de pessoas com as quais não nos importamos.

Bingo de erros

Difícil decidir quem comete mais incoerências: o roteirista, que não leva em conta o que ele próprio escreveu; ou a personagem, dada sua formação em Direito.

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Primeiramente, custo muito a acreditar que um homem envenenado, que demonstra claros sinais de envenenamento e chega a conseguir dirigir, tenha infarto como causa de morte.

Além disso, um homem dessa classe social não seria enterrado sem uma autópsia, que revelaria a real causa da morte, até mesmo porque uma pessoa atacada com uma seringa na mão não fica sem marcas (mesmo quando um enfermeiro é cuidadoso podemos ver a marca da agulha na pele).

Lauren é um nível mais qualificado de desinteligência: do momento que ela descobre sua herança até o final, ela parece compreender menos que um espectador comum sobre crimes. Mesmo se tivermos em mente o dilema entre sua suposta moralidade e a defesa do nome da família, tudo que ela faz é errado.

É desproporcional a reação de Lauren diante das descobertas sobre o passado do seu pai. Trancou uma pessoa em um bunker? Tudo bem. Matou uma pessoa e enterrou no meio do nada? Tudo bem. Mas trair a esposa é algo que Lauren não pode suportar que o pai tenha feito.

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Ponto para o vilão

Simon Pegg sobrevive com uma certa graça em meio à pilha de desapontamentos que é Herança. Seu personagem é apenas uma pessoa sem escrúpulos que busca vingança, mas a sua atuação como alguém inocente realmente adiciona profundidade ao personagem, mesmo que isso seja jogado no lixo com o plot twist tirado da cartola pelo roteiro.

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Pegg consegue convencer o espectador da sua inocência nos momentos em que tem contato com os prazeres que não tinha há anos. Bom ou mal, seu personagem é também uma vítima, afinal, se de fato ele era um estuprador, cabia à justiça fazer algo. Trancar uma pessoa em um bunker durante trinta anos não deixa de ser crime porque a vítima é criminosa. A questão aqui, no entanto, não é os direitos humanos, mas como esse foi outro viés pouquíssimo explorado pelo roteiro.

O personagem de Pegg é mais uma oportunidade de desenvolver uma discussão profunda que o roteiro ignora. Herança é o desperdício de inúmeros bons argumentos que gerariam filmes realmente interessantes.

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Ao final, Herança é só uma versão fraca do mundo que conhecemos através de obras como House of Cards e, ao contrário da série, não temos a sensação de que os Monroe são pessoas horríveis e que de forma alguma merecem todos os privilégios dos quais gozam. Ao final, mãe e filha saem como heroínas.

Trago de volta a questão: se elas são heroínas, quem poderia se identificar com esse tipo de heroísmo? Quem é o público alvo deste filme? Certamente não é a maioria. Herança é uma historinha de suspense para crianças mimadas, para que elas entendam que o nome da família está acima de qualquer coisa.

Herança pode ser assistido na Netflix.

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech