Crítica | El Camino respeita os fãs e abraça o público
Por Sihan Felix | •
Dar continuidade a um trabalho essencialmente bem feito não é fácil em nenhuma área – artística ou não. Manter o nível de uma realização aclamada e finalizada é, inclusive, uma meta injusta. Cada obra é o que é separadamente. Vince Gilligan, criador de Breaking Bad, experimentou isso de uma maneira mais amena ao lançar Better Call Saul. Nesta, com a história se passando nos momentos que antecedem a jornada de Walter White e focando em um personagem tão coadjuvante, não havia uma necessidade de manutenção de nível (por mais que ela exista). A liberdade em uma prequela é muito maior do que em uma obra que pretende dar uma continuidade temporal – especialmente se essa continuidade for a de um personagem tão importante e exposto quanto Jesse (Aaron Paul).
Cuidado! Daqui em diante a crítica pode conter spoilers!
A vida vai passando...
El Camino: A Breaking Bad Film (já disponível na Netflix) parece muito consciente de tudo desde o início, quando Jesse e Mike (Jonathan Banks) conversam já em flashback. Nesse ponto, não é exatamente o diálogo que conduz a história, mas o trabalho semiótico realizado pela direção de Gilligan. Enquanto eles conversam, o diretor faz questão de conduzir o olhar do espectador pelo local. Ali, na beira de um rio e de frente para um monte, as imagens podem transmitir alguns significados: o rio que corre para a direita quando visto em plano detalhe anuncia que a história continua e aquele enorme obstáculo de terra e rochas parece prevenir o que virá para os dois.
Instantaneamente, quem está com a memória em dia sobre a série original sabe bem o destino de Mike e, nesse momento, entende que começará a embarcar na trilha da vida de Jesse logo após os acontecimentos do episódio Felina (o último de Breaking Bad). E é justamente isso que Gilligan (que também roteirizou o filme) faz: após trabalhar a abertura de maneira imagética, ele emenda na fuga da personagem de Paul que teve início em 2013.
A consciência e o cuidado estético de Gilligan – que dirigiu, além de outros três, o episódio piloto e o último (o citado Felina) da série finalizada há seis anos – são escancarados. Inclusive, ele se vale de uma imagem de game (um gameplay de fato) para, além de separar ficção e realidade dentro do seu universo, fundamentar Skinny (Charles Baker) e Badger (Matt Jones). Ao passo que a dupla é apresentada enquanto joga o tal game que quase se mistura com a realidade – e Gilligan separa tudo ao desvincular a imagem que a dupla vê da que o espectador assiste –, ela (a dupla) entende que a vida é do lado de fora da televisão.
Esse sentido que é imposto às personalidades de Skinny e Badger acrescenta um nível de carinho que contrasta precisamente com tudo o que Jesse acabara de passar. A amizade explícita que o protagonista recebe é acompanhada por mais um tratamento metafórico: a água como agente purificador. Se no início a correnteza do rio já indicava um caminho que corre em direção ao futuro, é o banho insistido pelos amigos que acaba por lavar o passado de Jesse e lhe dar forças para seguir.
Mas não é só: ele (Jesse) não quer limpar o passado, ele quer, inconscientemente, ter uma referência que lhe impulsione a conseguir o que deseja. E é no visual (novamente) trabalhado tanto pelas ideias de Gilligan quanto pelo figurino de Louise Frogley (de Homem-Formiga e a Vespa) que ele se encontra e parece renascer. Com a cabeça raspada quase tanto quanto a de Walter, com a barba aparada de uma forma que o bigode ganha um leve destaque e com uma touca tal qual Heisenberg e seu chapéu, Jesse acaba por se ligar ao seu mentor e parte diretamente para reaver todo o dinheiro que foi roubado por Jack (Michael Bowen), o tio neonazista de Todd (Jesse Plemons).
Gilligan é certeiro em, pouco depois, confirmar a morte de Walter através do rádio do carro em que Jesse está fugindo. Além de eliminar de vez a chance de um retorno inusitado do personagem, liga o fim de um ao recomeço daquele que é visto em close. Mas Jesse nunca foi Heisenberg. Apesar de tudo, seu coração sempre foi mais humano ou, na pior das hipóteses, menos controverso. Ali está um homem pronto para reaver a sua vida e, para isso, está indo ao encontro de um passado que ele nem gostaria de ter tido.
Toda essa complexidade, porém, é mais do que viável, como dito, para quem está com a memória em dia com Breaking Bad. Não que El Camino [...] não tenha seu valor como obra individual. O trabalho de Gilligan é tão bem-acabado que pode transcender essa questão de ser uma sequência ou uma continuação. Ao manter a linguagem da série (que já era basicamente cinematográfica – fugindo da televisiva) e, para além, injetar planos mais amplos e solitários, ele (Gilligan) não apenas respeita o fã, mas tenta cativar e abraçar o espectador curioso ou que não sabe exatamente do que se trata o filme. Aliás, as referências do diretor ao cinema clássico, especialmente ao faroeste de Sergio Leone – com uma cena já antológica entre Jesse e Neil (Scott MacArthur) que emula Três Homens em Conflito em uma locação confinada.
... e deságua aonde tivermos a oportunidade de chegar
Ainda, por mais que um flashback de uma conversa seja pouco para saudosistas de Walter White, é nesse um que pode ser percebida (novamente) a complexidade do falecido. Ao indicar caminhos de progressão na vida para Jesse – direcionamentos para longe do crime –, o já bem adoentado protagonista de Breaking Bad se faz preocupado. E é interessante que todas as discussões e brigas passadas pelos dois durante as cinco temporadas pareçam condensadas em uma cena de poucos minutos.
No final das contas, Jesse encontra el camino por meio das palavras do enviesado mentor. Mas não somente: a vida é quem o guiou de fato, assim como as águas de um rio fluem naturalmente. Claro que os obstáculos existem, mas eles ficam menores a cada vez que são ultrapassados. Parte da nossa força nasce daí. E é nessa busca por força que, enfim, Jesse reencontra seu passado mais bonito – existente somente em flashback ou memória criada por culpa de Heisenberg – e se separa do inferno que era sua vida junto ao ex-professor.
Se no gelado estado do Alaska as águas congeladas indicam que, enfim, ele (Jesse) pode parar e descansar, isso não indica que sua vida foi solucionada. A questão é que, agora, ele está sozinho e a solidão – para quem passou uma vida amando e com amigos de verdade – pode ser mais fria que qualquer temperatura.