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Crítica | Coringa 2 abusa do delírio musical em espiral de anticlímax

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Warner Bros.
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Muita gente já sabia que Coringa: Delírio a Dois, estreia recente do circuito nacional da última quinta-feira (3), não iria agradar boa parte dos fãs do primeiro filme. Isso porque o burburinho nas redes sociais e as primeiras impressões voaram em alta rotação na web antes mesmo da virada do mês, com uma choradeira de volume alto. E será que as reclamações sobre uma “continuação que não continua nada” eram mesmo autênticas? Vem comigo que te dou uma luz em uma crítica sem spoilers.

Antes de entrarmos mesmo nos detalhes decepcionantes que superaram os bons momento de Coringa: Delírio a Dois, é importante lembrar o que realmente levou esse filme a ser produzido, pois tanto diretor Todd Phillips quanto o ator Joaquin Phoenix faziam questão de deixar claro que a história construída em Coringa foi criada para ser hermética.

Era para ser a concepção desse vilão quase centenário como um sintoma de uma sociedade doente. A proposta de sequência ficou para os fãs continuarem a trama por si mesmos, em suas próprias mentes. Quando Coringa chegou aos cinemas em 2019, ninguém esperava muito de um um filme com verniz independente de baixo orçamento e a assumida caracterização crua e realista de Phillips, com uma pedante definição de “análise de personagem” explicada antipaticamente por Phoenix.

Assim, quando Todd Phillips entregou o primeiro Coringa, ninguém esperava muita coisa, principalmente porque nada parecia ornar: Phillips é conhecido por domínio narrativo e boa direção de elenco, contudo, a crítica sempre o associou a comédias brisadas e cenas escrachadas, a exemplo de um cachorro se masturbando em Um Parto de Viagem. E Phoenix vinha de um hiato de atuações e recorrente fama de grosserias nos sets de gravação.

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Para demolir de vez as expectativas, os fãs do Batman eram alertados o tempo todo antes da estreia que Coringa não teria conexão direta com o vilão clássico; e a caracterização seria bem realista, sem qualquer participação do herói a quem ele antagoniza. E pior: teria zero conexão com o DC Studios e o Universo Estendido DC (DCEU, na sigla em inglês) da época. A produção “baixa-renda” de US$ 55 milhões, uma "esmola" se comparada com os gastos do Marvel Studios, por exemplo, também sugeria algo mais intimista e sem cenas de ação.

Ainda assim, o filme bombou demais, com a avassaladora bilheteria de mais de US$ 1 bilhão. Isso obrigou a Warner Bros. a abordar sistematicamente Phillips e Phoenix, na missão de convencê-los insistentemente para a sequência que eles juraram que não fariam.

E aqui estamos, com uma continuação que faz quase o oposto do que a narrativa do primeiro fez, em meio a um certo drama de tribunal que os estadunidenses adoram.

Musical delirante desconfortável

Coringa: Delírio a Dois começa apenas alguns meses depois que o primeiro terminou, então, é uma sequência que encontra Arthur Fleck em sua plena transformação no Coringa. E, como vimos na conclusão do filme anterior, ele foi preso após um rastro de assassinatos chocantes. Dessa forma, além de esperar pelo seu julgamento, ele passa a ser tratado no hospital psiquiátrico na prisão em Arkham. 

Para sua surpresa, uma parcela da sociedade de Gotham se sentiu representada pelo Coringa, a ponto de ele atrair centenas de seguidores, que não somente apoiam seus crimes hediondos, como também começam a teorizar e glamourizar sobre sua figura. Muitos passam a realmente a acreditar que o terrorismo, a violência e sarcasmo agressivo sejam uma solução para as enfermidades sociais.

Enquanto Fleck começa a compreender sua dupla personalidade, ele encontra admiração e fascínio no olhar da psiquiatra Harleen Quinzel, que se apaixona pelo Coringa. Então, em vez de ajudá-lo a lidar com sua condição, ela o incentiva a se entregar completamente à faceta de Palhaço do Crime. E, claro, como exibido nos trailers, Quinzel também vai liberando dentro de si seu lado mais sombrio e perverso na forma de Arlequina.

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É claro que Gaga não foi convocada para atuar sem deixar seu talento musical no longa. Como disse acima, Phillips tem uma excelente domínio de narrativa, e, ao longo dessas sequências, até dá para compreender a razão pela qual os trechos musicais são jogados de forma insistente — tem hora que até parece que foram editados com algum erro de fluxo na construção da história.

Mas aos poucos vamos percebendo que Phillips não queria apenas demonstrar como o assassino se projeta em seu mundo; ele também foi transformando o desconforto proposital, de mudanças bruscas de velocidade e estilo de narrativa, em um verdadeiro teste de paciência.

Dá até para associar as “intromissões sonoras” a uma forma de explicar como é difícil viver na pele de Fleck sendo perturbado constantemente pelos seus fetiches violentos e atormentados. Só que isso chega a irritar até mesmo os fãs devotados e bem alimentados, assim como e as almas mais pacientes.

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Os fãs que viram a escalada de Fleck até o Coringa sair da jaula e vão para a sessão esperando ele se tornar ainda mais caótico, monstruoso e invencível, podem se decepcionar ao notar que a caracterização oferecida por essa oscilação de mundos e personalidades aos poucos avisam o objetivo: seguir explorando o impacto de uma sociedade doente e sua possibilidade de arruinar a vida das pessoas — e não exatamente criar supervilões sagazes, inteligentes e cheios de contingências.

Espiral de anticlímax 

Boa parte das pessoas da audiência pode até acreditar que anticlímax seja um aspecto negativo; embora realmente cause mesmo uma certa decepção quando não acontece de maneira proposital ou adequada, não deixa de ser um recurso para surpreender o espectador. Costuma ser melhor e mais usado em tramas envolvendo mistérios de assassinato e comédias nonsense.

Entretanto, em Coringa: Delírio a Dois, a sequência de momentos anticlímax chega a ser um exagero punitivo para quem está na poltrona. A sensação é de que Phillips realmente quer mostrar que você não pode esperar que algo vindo das piores facetas dessa Gotham City se desenvolva da forma poderosa, libertadora e questionadora, como a transformação de Fleck no Coringa sugere na conclusão do primeiro filme.

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Além disso, há uma visível preocupação da produção com a interpretação e a importância que muitos fãs deram ao comportamento perturbado e as ações terroristas e criminosas do Coringa no primeiro filme. Isso é especialmente temeroso nos Estados Unidos, que vive testemunhando assassinatos em série e em massa, principalmente nos tiroteios em massacres escolares — vale lembrar que um jovem vestido de Coringa já entrou barbarizando uma sessão de cinema.

Então, muito do que vemos na sequência pode ser considerado um choque de realidade para que as pessoas notem que alguém como o Coringa não pode prosperar. Além disso, a Arlequina, em um corajoso papel assumido por Lady Gaga, pode representar muito bem aquelas pessoas de mente frágil que são influenciadas por uma glamourização de assassinos e por banalização da violência.

E, se for aos cinemas, prepare-se para jogar água fria em todas as expectativas, porque tudo o que muitos esperam não acontece. A Arlequina seria justamente aquela pessoa que se a apaixonou por uma figura que não existe, e que, caso fosse real, não mereceria um pingo sequer de devoção ou carinho.

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Como o sucesso de Coringa destrói sua própria sequência?

Coringa chegou em um contexto bastante específico. Os fãs estavam insatisfeitos com o DCEU; os cinéfilos já tinham enchido o saco das produções formulaicas da Marvel Studios; e, poucos meses depois, a sociedade que já vinha polarizado opiniões a ponto de criar uma atmosfera agressiva e intolerante em todas as partes do planeta, ficou rapidamente mais doente com a escalada de covid. 

Depressão e ansiedade se tornaram mais presentes e graves no cotidiano do isolamento social com notícias diárias de milhares de mortes. Isso tudo contribuiu para que muita gente visse o Coringa como o herói da história, já que sua resposta enérgica e o apego ao caos e terrorismo seriam uma aparente solução para a inércia.

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Coringa constrói uma Gotham City que é uma mistura da Chicago autoritária dos anos 1930 e da Nova York entregue à criminalidade nos anos 1970 — ainda mais com aquelas referências a Taxi Driver e Operação França, acertaram em cheio no timing e na descrição da cidade. Isso chegou em um momento do mundo real em que a extrema direita se consolidou como uma força de repressão, enquanto o mundo seguia para um iminente isolamento social e milhares de mortes em todo o globo.

Assim, a ambientação de Gotham City como uma cidade inóspita e intolerante foi um excelente palco para mostrar que o Coringa é um sintoma de uma sociedade doente. E, mesmo sendo resultado de uma cidade perturbada que banalizou a violação diária da dignidade de seus próprios moradores, muita gente acabou se relacionando com a “invisibilidade” e o isolamento de Arthur Fleck.

E, em Coringa: Delírio a Dois, vemos Phillips e Phoenix destruindo completamente tudo aquilo que eles construíram na primeira parte. O final sugere que há a possibilidade de termos algo conectado com o mistério dos Três Coringas, publicado em um especial do Batman no selo adulto Black Label — quem sabe?

Vale a pena?

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Coringa: Delírio a Dois não é um filme divertido, e nem foi feito para honrar as raízes dos quadrinhos — muito menos para justificar ou demonstrar a criação de um monstro assassino. É a história de como uma sociedade pode arruinar a vida de alguém e contaminar uma comunidade inteira com uma figura que mascara toda sua solidão, o vazio e a covardia por meio de atitudes aparentemente revolucionárias ou questionadoras.

Assistir ao filme não é uma experiência agradável, ainda mais se você for pagar caro por isso. Os que curtiram o primeiro Coringa, e/ou o mais devotos que “precisam ver”, digo sem pensar duas vezes: Quem precisou fazer isso, para você não “ser obrigado”, fui eu.

E, sinceramente, preferia, apenas talvez, ter visto mesmo quando chegasse ao streaming.

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