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Crítica | Cargo — O discurso social decorativo e a força emocional

Por| 30 de Maio de 2018 às 18h07

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Netflix
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Antes de seguir adiante, cuidado. Esta crítica contém spoilers!

Em 2013, os diretores Ben Howling e Yolanda Ramke lançaram o curta-metragem Cargo, que se tornou viral rapidamente após a temporada de festivais. Escrito por Ramke, o filme foi indicado, inclusive, ao Australian Screen Editors (ASE Awards) daquele ano – algo como um Oscar nacional de Melhor Edição/Montagem. Apesar de o curta funcionar muito bem em seus sete minutos de duração, não é difícil imaginar o seu potencial com mais recursos financeiros e com o tempo de um longa-metragem para desenvolver cada competência, seja narrativa ou técnica.

A dupla não tardou em iniciar a produção, então, do filme em questão. A tarefa mais árdua, portanto, era dimensionar aquela história a ponto de a tornar relevante em grande escala temporal. A saga de um pai para proteger a filha bebê em um mundo pós-apocalíptico ocupado por zumbis precisava de afluentes com o poder de desaguar no mesmo mar.

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Mea-culpa

Optando por não explicar de onde, como ou por que a epidemia iniciou, Ramke guia seu roteiro à base do mistério. Dessa forma, a curiosidade inicial acaba por funcionar como um estimulante para o público. Esse interesse primeiro logo é direcionado para as relações interpessoais, algo que parece uma constante ininterrupta em filmes do subgênero zumbi desde a primeira temporada da série The Walking Dead (2010). O que se sabe, através de pequenos detalhes, é que a epidemia não é recente. O mundo está infestado há tempos, como revela o kit de sobrevivência da família de Andy (Martin Freeman, de Pantera Negra e da série Sherlock) – porque um guia de subsistência contra mortos-vivos tão detalhado não poderia ser fruto do agora.

Esse passado indefinido do armagedom que Cargo apresenta inicia uma metáfora que só se torna explícita em seus minutos finais: Não é de hoje que o homem procura sua própria elevação em detrimento de iguais, como sintetiza bem o personagem Vic (Anthony Hayes, de War Machine). Pior: Não é de hoje que o dito “homem branco” invade terras, destrói povos e espalha suas doenças. Há um momento no filme em que, traduzindo da língua aborígene, Andy é chamado justamente de “homem branco” por Thoomi (Simone Landers) e, pouco depois, diz que prefere ser chamado de “amigo”, em um razoável exercício de mea-culpa.

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Sete que valem por três e 105 que valem por 200

Por outro lado e apesar das boas intenções, o roteiro peca ao criar esses focos de interpretação e distração sem jamais aprofundá-los. A impressão é a de que havia a linha condutora do pai que precisa deixar a filha a salvo e, transversalmente a essa linha, foram sendo traçados enxertos somente com a intenção de deixar o filme mais longo. Essa sensação é reafirmada pela direção da própria Ramke e de Ben Howling (ambos do curta originário, como dito) e da edição de Dany Cooper e Sean Lahiff, que prolongam cenas que já tinham dado o suficiente como se exigissem entendimentos que nem mesmo eles possuíam.

Assim, em todo o segundo ato e em boa parte do terceiro, Cargo se arrasta mais do que poderia se aceitasse ser um filme com 20 minutos a menos de duração. Isso o faz bater de frente com a edição/montagem minuciosa de Shannon Longville para o curta-metragem, que, ao mesmo tempo em que explicita tudo o que é necessário, corta de uma forma que a história se move sem quaisquer entraves – por isso a facilidade de o querer muito maior, porque seus sete minutos passam como três.

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Em contrapartida, Martin Freeman é um ator tão competente e carismático que faz das tomadas prolongadas algo que chega a ser agradável de se ver. Isso só engrandece a relação dele com a pequena Rosie (vivida pelas bebês gêmeas Lily Anne e Marlee Jane McPherson-Dobbins). Alguns momentos são de olhares e sorrisos tão genuínos que a personagem parece realmente ser filha de Freeman e ele seu pai.

Um alento para descansar em paz

Ao final, o melhor do filme é justamente o que há de mais forte naquilo que o originou: o amor paterno. Toda a carga social, a crítica sobre o homem branco invadir as terras de donos que ele desconhece – estes representados aqui pelos aborígenes – e um possível e utópico renascimento juntos, fica deslocada em meio ao drama familiar. O que poderia ser um adendo forte à história não é mais do que um enxerto decorativo.

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Mas não é de todo mau. A relação de amor entre pais e filhos sempre é bem-vinda ao ser revisitada. E, ainda, por mais que a mãe saia de cena ao final do primeiro ato, sua presença é mantida até a cena mais emocionalmente forte. Para os mais sensíveis – e por mais cafona que possa parecer em dias nos quais sentimentos íntimos estão se metamorfoseando em acessórios antiquados –, o aroma de quem se ama pode ser um alento para descansar em paz.