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Crítica | Anon - ou o medo de não ser mais humano

Por| 11 de Maio de 2018 às 15h15

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Crítica | Anon - ou o medo de não ser mais humano
Crítica | Anon - ou o medo de não ser mais humano

Antes de seguir adiante, cuidado! Esta crítica contém spoilers.

Na filosofia, o conceito de privacidade é abordado sob diversos aspectos. Entre eles, o que talvez mais cause uma reflexão pessoal imediata e íntima é o relato do franco-magrebino Jacques Derrida em seu livro O Animal que Logo Sou, quando se referiu a se ver nu diante de seu gato.

Derrida expôs: “Frequentemente me pergunto, para ver, quem sou eu – e quem sou eu no momento em que, surpreendido nu, em silêncio, pelo olhar de um animal, por exemplo os olhos de um gato, tenho dificuldade, sim, dificuldade de vencer um incômodo.”

Uma metáfora do presente

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Anon trata de um tempo que não se permite utópico e nem distópico. É um tempo, ainda, possível ou não. Tais características são ressaltadas por um desenho de produção que aposta muito mais na mistura entre o passado e o que poderá vir do que em uma tentativa de previsão real, algo que é notado nos carros que mais parecem versões futurizadas dos sedãs das décadas de 1960 e 1970 e nos arranha-céus que recebem texturas mais frágeis e expositivas – vidros e materiais que refletem a luz ganham mais destaque em relação ao cinza do concreto, por mais que estes estejam sempre intensamente ali. Mas essa relação é tratada com tanta naturalidade quanto possível, visto que a paleta fria de cores confere a esses detalhes a mesma frieza imposta pelo cimento.

É plausível, assim, que Anon não se trate de um futuro qualquer, mas de uma metáfora do presente. A leitura do filme como uma atualidade paralela pode proporcionar um entendimento menos julgador e mais reflexivo. Dessa forma, além da privacidade estar em xeque, a ética, com sua discussão cinemática mais recorrente desde Minority Report: A Nova Lei (2002), de Steven Spielberg, surge como conteúdo base para o desenvolvimento da trama.

O ser humano como borda

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Tal discussão compreende o lado que acredita no direito inalienável à privacidade e que nada justifica a subtração da liberdade individual e o lado apoiado na máxima “quem não deve não teme”, que acredita que praticamente tudo é válido na coibição de cidadãos infratores. Por outro lado, diz muito sobre o filme o fortalecimento gradativo da história pessoal dos seus personagens e o investimento em um desenvolvimento que resultará somente em um plot twist final sem inspiração. Ao tratar de uma maneira completamente rasa uma discussão tão importante, o irregular roteirista e diretor Andrew Niccol (de Simone, O Senhor das Armas e O Preço do Amanhã) mostra-se mais interessado em construir uma obra que acaba em si, sem poder para continuar viva.

É justamente na questão mais crucial de Anon, a já dita discussão ética, onde reside um deslize fatal para qualquer moral necessária – especialmente em um filme que trata, sim, de assuntos reais. Ao apresentar, já em sua introdução, toda a tecnologia que permite se saber detalhes sobre outrem – do nome à profissão, da idade à minibiografia – (que pode lembrar o excelente terceiro episódio da primeira temporada da série Black Mirror, The Entire History of You), Niccol retrata um mundo extremamente pacífico com um grau de não-privacidade extremo. É de se estranhar, assim, a não existência de uma única menção durante os 100 minutos do filme sobre quaisquer grupos dissidentes.

Relevando a humanidade como de fato ela é – diversa em posicionamentos, jamais homogênea – em prol do foco policial e investigativo, o roteiro de Anon se perde em uma história robótica, sem a chance de humanizar seu conteúdo e se tornar, então, tão relevante quanto o já citado filme de Spielberg, Minority Report: A Nova Lei, e tantas outras obras de ficção científica que têm o ser humano como recheio e não como borda.

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A proporção do quadro e o efeito de imersão

Mas há como mergulhar no mundo proposto por Niccol. Anon é, se não pelo que tem a dizer, tecnicamente quase irrepreensível. É de se reparar, por exemplo, como as informações sobre transeuntes, personagens e objetos surgem apenas quando a câmera está em primeira pessoa e, nesse caso, como o quadro é expandido para a tela cheia, buscando a visão ampla dos olhos reais do espectador. Do contrário, se a visão que se tem é a do próprio diretor – a visão de cinema em si e do prosseguimento da história –, o quadro se volta à proporção mais comum dos filmes atuais (janela panorâmica ou anamórfica), recebendo as reconhecidas barras pretas horizontais em cima e embaixo.

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É justo ressaltar, também, a eficiência da utilização das informações que surgem quando em primeira pessoa. Se tais dados podem aparecer e desaparecer tão rapidamente, tornando impossível a leitura completa deles, trata-se de um reflexo genuíno daquele mundo a partir do momento em que eles só surgem quando se está acompanhando a visão de um personagem. Esse efeito de imersão pode ser mais efetivo quando se vê que as cenas chaves, das quais a personagem sem nome de Amanda Seyfried é suspeita, tratam-se quase de uma analogia à tão em voga realidade virtual (bem trabalhada em outro filme de Spielberg, dessa vez mais recente, Jogador Nº 1).

O medo é sempre mais possível quando se busca tornar-se humano

Por fim, cabe ao público de Anon criar e buscar suas próprias reflexões. Em meio a escândalos de redes sociais, roubo de dados, vazamento de informações privadas e a chegada cada vez mais repressora de uma era onde ter uma vida pessoal particular é coisa de fracassados, resta saber se o fracasso é privatizado ou se ele é público. E público, moralmente, refere-se a todos, à humanidade.

Derrida, mais uma vez em O Animal que Logo Sou, diz: “Tenho dificuldade de reprimir um movimento de pudor. Dificuldade de calar em mim um protesto contra a indecência. Contra o mal-estar que pode haver em encontrar-se nu, o sexo exposto, nu diante de um gato que nos observa sem se mexer, apenas para ver.”

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É interessante e circunstancial perceber que um corpo nu nada mais é do que um corpo nu, mas que a liberdade contida no não-querer-se-mostrar e o ponto de civilização ilusório alcançado permite que se possa ser o que se é.

“Em princípio, excetuando-se o homem, nenhum animal jamais imaginou se vestir. O vestuário seria o próprio do homem, um dos "próprios" do homem.”

Com mais esse trecho de Derrida, que o presente paralelo de Anon continue sendo paralelo de fato e que se possa descobrir, sempre mais, que quem não deve pode temer sim. No mundo particular, pode-se temer de um olhar desinteressado de um gato a uma revista policial forçada. Ainda mais quando, neste caso, sente-se julgado e ameaçado por ser ou por existir.