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Cultura de proteção de dados ainda é um desafio no Brasil e na América Latina

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Bruno De Blasi/Canaltech
Bruno De Blasi/Canaltech

Mesmo com a Lei Geral da Proteção de Dados (LGPD) em vigor há quase seis anos, a cultura de proteção de dados no Brasil ainda não é uma realidade. Contudo, essa não é uma situação única do Brasil: em entrevista exclusiva ao Canaltech na última terça-feira (16), o coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Luca Belli, explicou que a questão é um desafio regional da América Latina.

A conversa ocorreu durante a abertura do evento CPDP LatAm 2024, realizado pela FGV Direito no Rio de Janeiro (RJ). Na exposição inicial, o professor participou de um debate com a participação do diretor-presidente da ANPD, Waldemar Gonçalves, da relatora da ONU sobre privacidade, Ana Brian, entre outros especialistas e autoridades, onde foram discutidas as questões que precisam de atenção no bloco em relação à proteção de dados.

Confira a entrevista na íntegra a seguir:

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Canaltech (CT): Vamos começar falando do evento. O que você achou desse começo?

Luca Belli (LB): Acabamos de começar, mas começamos muito bem. Essa é a 4ª edição do evento. Na verdade, começamos a conceber o evento em 2020 e, depois com a pandemia, tivemos que postergar. 

São cinco anos de aprendizagem, né? A gente está construindo realmente uma comunidade latino-americana de profissionais, uma comunidade multissetorial, com reguladores, governo, empresas, sociedade civil, especialistas e ONGs.

Esse debate inicial foi muito positivo, muito bom, para destacar quais são as prioridades, quais são os problemas que precisamos regular, que precisamos considerar o uso de dados de maneira interoperável, ou seja, tirar proveito desses dados, valorizar os dados, mas de maneira regularizada, não de maneira concentrada como frequentemente vemos. 

Na verdade, é isso que acontece, mas temos a possibilidade de reverter, ao menos mitigar essa tendência, ou seja, regular as transferências de dados ou uso de dados pessoais de um lado, justamente para evitar que haja essa concentração, e de outro, permitir aos indivíduos ter um real controle sobre os seus dados, que é a parte chamada autodeterminação informativa, que no Brasil é a base da Lei Geral de Proteção de Dados. É o segundo artigo da lei e que, recentemente, como mencionei na minha fala inicial, foi também consagrado como um direito autônomo ao nível latino-americano pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

É por isso que fizemos essa proposta, também, de criar um marco regulatório regional justamente porque hoje em dia temos as bases para fazê-lo e, especialmente, a vontade de fazê-lo.

CT: A gente fala muito aqui no Brasil sobre a cultura de proteção de dados, que é um desafio que nós temos. Esse cenário se aplica para a América Latina como um todo ou alguns países da região estão mais adiantados? 

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LB: Claramente isso é um enorme desafio regional. São países nos quais a proteção de dados chegou recentemente, com exceção de alguns países, como Uruguai, Argentina e México, que adotaram já no início da década de 2000 e 2010 as leis deles, enquanto os outros adotaram nos últimos quatro ou cinco anos — incluindo o Brasil. 

Isso significa que a lei foi adotada, mas, basicamente, ninguém conhece a lei. Então, o esforço de criar essa comunidade de especialistas, criar essas interações, essa pesquisa, essa divulgação, é essencial para construir uma cultura de proteção de dados, que é algo que, sem o qual, é inútil ter a lei de proteção de dados.

CT: Além da questão cultural, quais são os grandes desafios que nós temos no Brasil e no bloco?

LB: Primeiramente, o fato de ter uma efetividade da regulação. Mais uma vez, não é somente uma questão de construir a cultura. É uma questão de implementar a lei.

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A gente sabe que a lei existe, porém, a atuação é muito limitada em tempo de implementação. Esse é um ponto também que a gente destaca na nossa proposta de convenção de dar às autoridades reguladoras todas as medidas, os recursos, que sejam humanos ou econômicos, para poder atuar de maneira independente e de maneira contundente. 

De um lado, é necessário claramente uma obra de pedagogia para criar a cultura, para que as pessoas saibam quais são os direitos delas e também quem trata e processa dados saiba quais são as suas obrigações.

Do outro lado, é necessário sancionar quando estiver evidente o descumprimento à lei. Aí são duas tarefas complementares dos reguladores.

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CT: Falando sobre IA, como está sendo a questão do uso de dados para treinamento dos modelos? 

LB: A meu ver essa é uma das questões principais que temos na nossa frente e por enquanto não temos uma solução definitiva. 

Eu acho que sou muito crítico na atuação dos reguladores nesse momento, porque são eles que têm a responsabilidade de nos dizer como é que lei deve ser interpretada.

Claramente, você treinar o seu modelo com base na raspagem de qualquer dado pessoal que existe na internet, é extremamente difícil conciliar essa prática com a autodeterminação informativa, o controle sobre os dados. Não tem nenhum consentimento na raspagem total de dados, não tem nenhuma base legal. 

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Não estou dizendo que é ilegal. É o regulador que precisa nos dizer segundo quais condições podem ser [uma atividade] legal. Da forma como está sendo feita, é muito provavelmente ilegal na maioria dos casos. 

Então, esse é o pequeno segredo sujo da inteligência artificial generativa, que está sendo treinada e construída basicamente na ilegalidade.

CT: Nós temos até o caso recente da ANPD com a medida provisória aplicada à Meta

LB: Esse é justamente um exemplo no qual a atuação do regulador é essencial para nos indicar quando essa prática é possível. Mais uma vez, não é preciso proibir o treinamento de modelos com dados pessoais. Pode ser absolutamente legítimo. Porém, é preciso definir como.

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Nesse momento, estamos em uma situação de total ignorância do lado de quem treina sobre como fazer [o treinamento] legalmente. 

Quem fez de boa fé está perdido e quem fez de má fé sabe que não está sendo nem orientado e nem fiscalizado. É uma situação muito pouco sustentável neste momento.