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Crítica | Vozes e o terror da irresponsabilidade com a história

Por| 01 de Dezembro de 2020 às 19h20

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Quem me conhece e/ou lê minhas críticas sabe que é muito fácil eu defender ou encontrar pontos positivos em um terror. O filme precisa ser realmente muito falho para que eu não consiga encontrar pelo menos um ponto que valha a pena, o que também é um exercício de compreensão com qualquer filme, porque sei o quão difícil é tirar uma obra do papel. Vozes é desses filmes de terror que nos irritam pelo excesso de jump scares desnecessários ou mal-empregados e que poderia ser apenas mais um título a ser esquecido, não fosse o vespeiro no qual o roteiro toca.

É normal que muitos filmes comecem bem ou razoavelmente e só depois, quando o espectador mais resiliente está em um ponto no qual prefere ir até o fim, é que tudo começa a desandar. O péssimo e absurdamente raso início de Vozes pode ser, então, um presságio de que ficaria muito pior, ofensivo inclusive.

Não acredito na arte pela arte, o que significa dizer que também não acredito que um filme seja apenas um filme. Mesmo que a única intenção seja entreter, é responsabilidade do(s) roteirista(s) pensar todas as dimensões e implicações dos seus personagens, garantindo que nenhum deles esteja representando algo que não esteja de acordo com as suas crenças.

Imagem: Reprodução/Netflix
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Para entender isso, proponho um exercício: imagine um fantasma atormentado assombrando qualquer habitante de uma casa. É ele ou ela? De onde veio? Por que tanto ódio? Como ele ou ela mata suas vítimas? Por que dessa forma? Ao responder essas e outras perguntas é pouco provável que o escritor e, mais especificamente, o roteirista não coloque nesse personagem parte de suas crenças. Usemos isso para pensar em Vozes.

Atenção! A partir daqui, a crítica pode conter spoilers.

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A história de fantasmas...

Sem o background (a realidade na qual Vozes se sustenta e da qual falarei depois), a história de fantasmas também não se sustenta. Logo no início, o filme mostra-se raso com uma tranquilidade preocupante ao mostrar uma sessão entre Eric (Lucas Blas) e uma psicóloga. Em pouquíssimo tempo a profissional criada assume que as vozes que a criança escuta são apenas efeitos psicossomáticos causados pela mudança de local. Tudo bem ela não supor que a criança estava ouvindo algo sobrenatural, mas ela nem sequer considera a possibilidade de uma condição como ilusão auditiva ou distúrbio psicótico. Pior: ela nem sequer se interessa pelos desenhos da criança, uma das principais ferramentas de psicólogos infantis.

Imagem: Reprodução/Netflix
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Isso é apenas o início. O que se segue é uma série de concatenações falhas, com diálogos pouco verossímeis e um insistente uso de jump scares que não dão folga ao espectador, forçosamente pego de sobressalto pela técnica. É importante ressaltar que o jump scare é um recurso válido se bem utilizado, mas o emprego recorrente dessa técnica indica uma provável falta de criatividade da equipe, que não conseguiu pensar em formas mais interessantes de causar susto e/ou medo.

Há, felizmente, alguns bons momentos ao longo do filme, algumas construções competentes de tensão, como quando a mãe de Eric retorna à casa e alterna entre a visão abaixo e acima da cama, em um macabro pique-esconde com a fantasma. Em termos de atuação, Ramón Barea, intérprete do pesquisador Germán, parece ser a única peça convincente da produção e é quem acaba cativando o espectador ao ponto de não torcermos por sua morte como se estivéssemos diante de um slasher.

É raro também ver uma montagem tão descaradamente problemática e capaz de criar erros de sequência tão nítidos e que poderiam ser evitados justamente pela montagem. Por outro lado, o filme consegue a façanha de fazer um fechamento cíclico através da própria montagem de uma forma bastante louvável: Vozes é aberto com uma imagem aérea em que vemos a bola vermelha na piscina e é encerrado com uma nova imagem aérea, dessa vez mostrando o pai de Eric na piscina, formando o ponto vermelho no local da bola conforme a câmera se afasta.

Imagem: Reprodução/Netflix
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A bola, inclusive, é uma belíssima referência à O Iluminado e, desde a sua aparição na sequência de abertura, já pode ser aguardado pelos fãs da obra de Stanley Kubrick o momento em que essa bola avermelhada virá rolando de uma forma misteriosa. Expectativa essa que se concretiza nos momentos finais de Vozes.

… não é apenas uma história de fantasmas

O espírito que atormenta a casa ganha camadas ao longo do filme. Desde O Grito estamos acostumados com a ideia de que mortes traumáticas podem fazer uma alma ser tomada pelo ódio e a recente série A Maldição da Mansão Bly explorou bastante bem essa ideia. Nesses casos, geralmente entende-se que aquele mal puro teve origem em algo que não era unicamente mal, uma pessoa comum. Nos casos em que o mal existe sem justificativa, entende-se que seja algo demoníaco, ou seja, de essência má. E nenhum ser humano é essencialmente mau.

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Vozes, ao criar sua vilã a partir de um exercício muito mais rebuscado que aquele que convidei a fazer, conseguiu criar uma vilã unidimensional: uma bruxa, que é entendida como maligna, tendo sido terrivelmente torturada pela inquisição justamente por isso. Uma bruxa, conclui rapidamente Germán, só morre através do fogo e é essa a saída que o roteiro encontra para que os personagens se livrem da tal entidade. Não há um aprofundamento da personagem, não há nem sequer uma justificativa através de alguma forma de possessão demoníaca.

Imagem: Reprodução/Netflix
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O roteiro de Vozes simplesmente assume que as bruxas eram criaturas malignas e incorpora nas entrelinhas da sua história a ideia de que a maldição só existiu porque os inquisidores não foram até o fim e não queimaram o seu corpo. O filme, no entanto, é espanhol e não tem desculpas para criar uma história como essa.

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A Inquisição teve lugar em diversos continentes, mas não é à toa que os livros de história deleguem um espaço especificamente para a Inquisição Espanhola, conhecida por ser a mais cruel. Estima-se que mais de 40 mil mulheres foram assassinadas pela Inquisição, um verdadeiro genocídio executado a partir da alegação de que muitas dessas mulheres seriam bruxas. Qual a intenção de roteiristas espanhóis ao reacenderem esse estigma? Estão querendo nos dizer que a Inquisição Espanhola estava certa?

Se eles não tinham nenhuma má intenção, o que também é possível, o roteiro segue igualmente ruim, demonstrando que pouca ou nenhuma pesquisa foi feita para a construção do universo do filme. O fundamento em fato histórico exige dos criadores responsabilidade histórica. Os jump scares, no entanto, são rentáveis e funcionam como cortina de fumaça para uma mensagem amarga.

Ah! E aos interessados em uma continuação, há cenas pós-créditos.

Vozes está no catálogo da Netflix.

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Com informações: Nerdologia História

*Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Canaltech.