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Crítica | Mistério no Mediterrâneo: sem a ajuda de aparelhos

Por| 25 de Junho de 2019 às 13h38

Netflix
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Adam Sandler parece ser aquele sujeito tranquilo, que não quer confusão com quem quer que seja, que está disposto a ajudar... o clássico bonachão. Durante a sua carreira, ele passou de comediante admirado na década de 1990 por ter seu jeito único – na mesma geração de Jim Carrey e Ben Stiller – a ator fadado a fracassos de crítica e divisores de público. Felizmente, enquanto ele produz e estrela filmes como Cada um tem a Gêmea que Merece (de Dennis Dugan, 2011) e The Ridiculous 6 (de Frank Coraci, 2015), também aparece em produções como Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe (de Noah Baumbach, 2017).

Ainda assim, até mesmo os seus filmes menos elogiados têm participações para lá de especiais: Al Pacino, por exemplo, está no dito filme de Dugan, e, em Mistério no Mediterrâneo, além do elenco bem recheado de estrelas (como Luke Evans, Gemma Arterton e Terence Stamp), a engajada e poderosa Charlize Theron é a produtora executiva – talvez comprovando o quão bacana é Sandler.

Cuidado! A partir daqui esta crítica pode conter spoilers!

Alguma torcida a favor

Mistério no Mediterrâneo é justamente uma espécie de materialização do que Sandler se concretizou com o passar do tempo. Ao passo que Carrey tornou-se um comediante (e não somente) em alguma medida sombrio e Stiller passou a ser relegado a filmes menos populares, Sandler permaneceu o mesmo. Suas produções quase sempre foram inofensivas, de um humor leve e despretensioso. Ao mesmo tempo, ele está permanentemente interessado em ter elementos sociais nos filmes que protagoniza, parecendo consciente de que cinema é arte e, como arte, é também uma ferramenta de discutir o mundo.

Nesse sentido, o roteiro de James Vanderbilt (de Independence Day: O Ressurgimento), cheio dos clichês necessários para marcar uma história de detetive, parece perdido na busca por comédia em meio a uma história que parece ter saído de um livro de Agatha Christie. Não bastasse o subordinado ser logo considerado o principal suspeito (como todo mordomo inicialmente o é), sem demora tudo descamba para uma clássica história sobre herança e vingança, com mortes em sequência que afunilam até a resolução do caso.

A questão é que, de fato, Mistério no Mediterrâneo pode divertir o espectador que se deixar levar pela sua falta de lógica interna. Se cada filme é um universo e, dentro de si, esse universo precisa funcionar e parecer possível (a tal da verossimilhança), essa produção da Netflix é muito o avesso disso – e em escala crescente. Enquanto Nick (Sandler) consegue se passar por detetive durante um bom tempo, enganando a esposa Audrey (Jennifer Aniston), sem demora ele compra passagens à Europa que prometia para ela há 15 anos. Tudo bem: classe econômica, tour de ônibus.

Crítica | Mistério no Mediterrâneo: sem a ajuda de aparelhos
(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
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Mas Audrey conhece Charles Cavendish (Evans), sobrinho de um bilionário (Malcolm Quince – Stamp). O moço charmoso a convida – junto a Nick – para uma estada em um iate da família. Ainda assim, releva-se: o sujeito é um excêntrico e quer incomodar o tio, chamar estranhos para a embarcação da família nem é tão atípico (dizem). Porém é no iate que a situação ganha agravantes difíceis de serem relevados: uma morte fisicamente improvável da forma que foi (a menos que o peito da vítima fosse de manteiga ou algo do tipo), o experiente escudeiro (Coronel Ulenga – John Kani) que pressente o crime e atira no escuro, sem saber para onde está atirando e um vencedor piloto de Fórmula 1 que não fala minimamente inglês (Juan Carlos Rivera – Luis Gerardo Méndez).

Crítica | Mistério no Mediterrâneo: sem a ajuda de aparelhos
(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

Há alguma graça nessas situações, especialmente pela consistência que Sandler e Aniston dão a cada cena, conseguindo se passar sem muita dificuldade por pessoas de renda muito inferior com relação àquela família bizarra. E conseguem sem ofender. Esse é, provavelmente, o ponto alto do texto de Vanderbilt, que entende a boa comédia como uma forma de atacar os poderosos sem menosprezar ou ridicularizar os demais. Assim, Nick e Audrey são carismáticos o suficiente para, em plena crise na relação, contarem com alguma torcida a favor.

Crítica | Mistério no Mediterrâneo: sem a ajuda de aparelhos
(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)
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Arrepios intensos

O grande problema é que o diretor Kyle Newacheck (do fraco Perda Total, 2018) dá a entender que trabalhou com uma indisposição que o incapacitou de ligar pontos simples da história. Não que isso faça com que o filme fique difícil de se enteder – não teria como nem mesmo se picotassem as sequências e montassem de forma dadaísta (dado o roteiro bobo). O fato é que os planos surgem em um grau de aleatoriedade que nem mesmo dois dos filmes mais bizarros da carreira de Sandler (os citados Cada um tem a Gêmea que Merece e The Ridiculous 6) têm. Não há opções de linguagem que auxiliem em qualquer dramaticidade e muito menos no suspense durante a busca por quem matou Quince. Neste caso, planos detalhes fogem como o diabo foge da cruz, como se fossem eles mesmos os criminosos. A impressão é de que Newacheck pedia que o posicionamento da câmera captasse o elenco e nada mais, indiferente a qualquer tentativa de deixar o filme menos irrelevante.

Crítica | Mistério no Mediterrâneo: sem a ajuda de aparelhos
(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

O pior é que a ideia geral não era ruim. Unir a esperteza e o mistério de uma história à la Agatha Christie com o jeito inofensivo do que Sandler faz poderia resultar em algo até certo ponto original ou com alguma funcionalidade, mas a verdade (longe de ser absoluta) é que Mistério no Mediterrâneo demonstra que não há acordo entre as partes: O mistério faz a comédia perder a graça e a comédia faz o mistério perder relevância.

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Para alguém como eu, que acredita no trabalho de Sandler; que o vê como um ator que já se provou muito além da fama (vide Embriagado de Amor, Reine Sobre Mim, o já exposto Os Meyerowitz: Família Não se Escolhe e outros); que criou – como uma brincadeira (dado o status de indiferença ou de ame-o ou deixe-o que ele tem) – o bônus Adam Sandler em cada lista de melhores, constatar mais uma produção perto de sofrível protagonizada por ele é doloroso.

Até mesmo as tentativas, tão queridas pelo ator, de ser socialmente relevante são arremessadas na trama como se o roteirista estivesse sacaneando: Vou colocar qualquer coisa sobre ela ser cabelereira para ele menosprezar isso e causar uma intriga... e depois vou usar isso de trunfo. Chego a escutar Vanderbilt sussurrando isso no meu ouvido. E os arrepios são intensos por motivos de Acorde, criatura! Você tem toda uma carreira pela frente!

Crítica | Mistério no Mediterrâneo: sem a ajuda de aparelhos
(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

Devoção

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No fim, a relação com a escritora inglesa criadora do fantástico detetive Hercule Poirot e a referência tornam-se bem evidentes (e visualmente direta antes dos créditos). Mas a história fica bem longe de fazer jus. É toda pinçada de maneira tonta de O Assassinato no Expresso do Oriente. E acaba clichê demais (longe de somente optar pelas convenções do gênero), honrando à falta de criatividade do título original Murder Mystery (Mistério do Assassinato em tradução livre).

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(Imagem: Captura de tela/Sihan Felix)

No mais, para surpreender como todo filme de detetive que se preze, Mistério no Mediterrâneo pode divertir sim. Mas talvez seja necessária a disposição de colocar o cérebro no colo e fazer carinho nele como a um gatinho. É um exercício de muita devoção e que exige prática, mas que pode surtir, enfim, algumas risadas.

Eu acho que consegui. Com algumas sequelas, mas sem a ajuda de aparelhos.