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Crítica | Prescrição Fatal é uma minissérie documental sobre um super-herói real

Por| 26 de Fevereiro de 2020 às 20h40

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Netflix
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Antes de começar a assistir a Prescrição Fatal (disponível na Netflix), o que mais me chamou a atenção foi o título nacional. Isso porque ele mais parece forçar a barra na caça por audiência, afinal, às vezes, é muito mais fácil e chamativo o título indicar algo sério do que ressaltar a eficiência – talvez metafórica – do original. Então, quando terminei de assistir ao quarto e último episódio da minissérie, eu percebi que estava em um dilema, quase um paradoxo: O título brasileiro realmente funciona, mas, na soma do todo, The Pharmacist (O Farmacêutico) faria mais justiça ao material exposto.

Eduardo Coutinho, o maior dos nossos documentaristas, uma vez disse que o documentário chega a se tornar ficção quanto mais se aproxima de realidade. Talvez, por influência dele (de Coutinho), eu tenha percebido Prescrição Fatal por uma esfera um tanto quanto ficcional. Nesse sentido, Dan Schneider, aos poucos, foi se transformando em uma espécie de super-herói... e isso com direito a uma construção de personagem marcada inicialmente por um trauma (como Batman e outros) e por vilões que, mesmo obviamente humanos, são complexos a ponto de terem as maldades embasadas – mas nunca exatamente justificadas.

Cuidado! A crítica pode conter spoilers!

O porta-voz

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Se o primeiro episódio funciona, de fato, como a origem de um super-herói – O Farmacêutico –, é também a partir dessa primeira hora que um trauma pessoal, já combatido com uma perseverança sobre-humana, fundamenta a personalidade do protagonista. Sua busca incessante por alguém que possa depor a favor de sua causa, o embate com uma testemunha mentirosa que gera um dos plot twists mais interessantes de toda a minissérie (que tem como antagonista o vilão menor – Jeffery Hall) – e que pode levar a discussões profundas sobre a influência do meio na formação particular e sobre luta de classes –, as ameaças de morte sofridas tanto por ele quanto por aquela que é o seu maior achado...

Tudo é construído como se fosse exatamente um monomito (a clássica Jornada do Herói). Dessa forma, a direção de Jenner Furst e Julia Willoughby Nason age como se, em primeiro plano, buscasse por essa base ficcional e, em segunda instância, encaixasse os acontecimentos. Enquanto Bruce Wayne passa a ser o Batman a partir dos seus medos e para causar medo, Dan Schneider deixa de ser um farmacêutico para inteirar-se como O Farmacêutico justamente a partir de sua maior dor, algo que o guiaria por toda a vida – ao menos pela vida exposta nas quatro partes da minissérie.

Essa dor, inclusive, é fundamental para entender o lado mais humano e compassivo do trabalho de Furst e Willoughby Nason. Há um entendimento fundamental aqui ao comparar – no melhor sentido – a dor do herói com a dor de uma comunidade e, mais à frente, de um país. É algo um tanto quanto scorsesiano, como bem lembrado por Bong Joon Ho durante a cerimônia do Oscar 2020: “O que é mais pessoal é mais criativo.”

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Prescrição Fatal é, por essa perspectiva, algo que parte do extremo pessoal para abraçar um todo surpreendentemente homogêneo. Isso porque a empatia, por mais que possa estar em desuso, acaba por ser uma faculdade emocional extremamente humana. Mas, sabendo que nem só de empatia vive a humanidade, existe uma crescente carga dramática no documentário que influencia a sensação de que cada espectador foi lesado e que, de algum modo, Schneider é o porta-voz: Ele deixa de ser o homem que buscava justiça em nome do filho para ser um justiceiro que luta por todos... e ele faz isso tudo tentando (e conseguindo) permanecer dentro da lei.

Túnel da Esperança

Na luta incessante por justiça, O Farmacêutico ainda vê a onda de opiáceos ser alavancada por uma catástrofe natural (o furacão Katrina), o que reforça a importância de sua existência enquanto homem nada acomodado. Essa onda, por outro lado, que se inicia pela médica Jacqueline Cleggett (a vilã média), desencadeia descobertas que vão do micro ao macro: de Cleggett à indústria farmacêutica (especificamente à Purdue Pharma e ao seu bilionário presidente – Richard Sackler, o vilão mais poderoso); do mal causado a dezenas de pacientes ao vício imposto a quase meio milhão de pessoas.

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O vício em OxyContin, aliás, produz uma rima absurda (no melhor sentido) para a finalização de Prescrição Fatal: Se a minissérie é apresentada a partir da dor de uma família por ter perdido um ente querido, ela cresce a ponto de se transformar em um tratado sobre a degradação de uma nação à procura por um analgésico para dores severas. A metáfora está implícita (talvez explícita). O povo, doente, acaba cansado demais para lutar contra a causa da dor, buscando somente que ela (a dor) cesse.

Schneider é aquele que, mesmo dolorido pela morte do filho, acaba por se entregar à luta de buscar caminhos e não somente respostas. Ele não quer modificar o fim; ele quer consertar o meio – e, de repente, reconstruir o início. Tudo rima aqui. O último episódio é consciente ao extremo por esse ponto de vista: Voltando-se para a dor pessoal do protagonista e de sua família, há uma despedida quase melancólica e, ao mesmo tempo, pontualmente otimista. Algo relativo ao Túnel da Esperança que, com toda a realidade traumática do filme (o que não deixa de ser), serve como um respiro. Nada melhor do que finalizar com a mesma crença do herói para que, de alguma maneira, sua força encontre ecos.

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