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Crítica | O Código Bill Gates glorifica o gênio e o filantropo, mas diz pouco

Por| 25 de Setembro de 2019 às 10h28

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Netflix
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Bill Gates

O mundo real não é feito de heróis, como bem sabemos. Eles são um fruto da ficção e, apesar de nos encherem de esperança, todos sabemos que a resolução dos problemas globais é feita por um grupo de pessoas. Mas toda equipe tem um líder, e colocar Bill Gates no comando de revoluções mundiais, seja no campo do software, da engenharia e, principalmente, de questões de saúde, é o foco de O Código Bill Gates, minissérie documental que estreou nesta semana na Netflix.

Em três episódios, a produção promete ser um olhar em primeira mão sobre a mente complexa e o trabalho de uma das personalidades mais importantes da história da tecnologia, mas que agora tenta ter impacto semelhante no mundo como um todo. Associando casos do passado para mostrar como o empresário atua no presente, a produção falha no que é, justamente, seu foco principal, apesar de ter muita história interessante para contar.

Antes de mais nada, é importante deixar bem claro que não se trata de uma produção biográfica, ao contrário do que os próprios trailers e materiais promocionais da série fazem parecer. Quem procura saber mais sobre a carreira e a trajetória de Gates não encontrará um terreno muito fértil aqui, apesar de os três capítulos estarem recheados de anedotas, histórias e depoimentos de colegas e familiares. Eles são parte da vida do empresário, é claro, mas não compõem um todo nesse sentido.

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Isso se prova especialmente real quando notamos que a Microsoft ganha real destaque somente na metade do segundo capítulo, mas quando somos apresentados à relação de Gates com Paul Allen, cofundador da empresa. O Windows, maior produto da empresa e responsável pela revolução no mercado de PCs, só dá as caras no terceiro capítulo e, da mesma forma que a companhia, jamais é o foco direto.

Com isso, a produção de Davis Guggenheim (Uma Verdade Inconveniente, Malala) passa longe das polêmicas e dos momentos sombrios para dar uma faceta de herói ao protagonista. Não que uma pessoa que dedique fortunas, influência e tempo para sanar os problemas globais não seja digna de nota e enaltecimento, muito pelo contrário, mas qualquer um que conhece pelo menos um pouco dessa história sabe que, aqui, estamos diante de um recorte muito particular e enobrecido sobre uma saga que se desenhou nas páginas dos jornais e noticiários de tecnologia.

Anedotas e intimidade

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O Código Bill Gates é basicamente um olhar sobre a forma como o bilionário pensa e atua. Essa ideia de recortes também aparece na forma pela qual a história é contada, traçando paralelos entre a infância e a adolescência do empresário para nos ajudar a entender como ele chega às soluções para problemas tão complexos quanto o fornecimento de saneamento básico para regiões remotas do Senegal ou a erradicação da poliomielite na África.

Um extenso e complexo trabalho de montagem de currículos escolares ainda na adolescência, por exemplo, serve como ponte para a criação de um cronograma para visitas de vacinadores na Nigéria, enquanto o ímpeto por sempre saber mais acaba levando Gates a se envolver nos projetos financiados por sua fundação filantrópica. A ideia passada pela produção é a de alguém que está sempre pensando, refletindo e, sobretudo, agindo.

Essa noção é pontuada por imagens de intimidade que denotam um amplo envolvimento do próprio Gates na produção da minissérie. Fora do tom formal e quadrado de documentários que muitas vezes não contam com o envolvimento direto de seus retratados, vemos na produção da Netflix o empresário andando pela floresta, carregando livros durante viagens ou se emocionando com a lembrança de parceiros já falecidos. As imagens trazem uma proximidade interessante com uma das figuras controversas de nossa história recente.

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Da mesma forma, tais cenas representam olhares pouco usuais sobre momentos grandiosos ou curiosos. Vemos o antológico momento em que Gates bebe a água tratada a partir de fezes humanas de um outro ângulo, enquanto, logo depois, o observamos em uma partida de carteado com ninguém menos do que o investidor Warren Buffett, de quem é um grande amigo. Eles também aparecem dividindo um hambúrguer e rindo da preocupação da filha do bilionário com a saúde do pai, já idoso, entre discussões sobre os problemas do mundo.

Chama a atenção, também, o destaque dado a Melinda Gates, com quem Bill dividiu não apenas a vida, mas também o trabalho de filantropia. Ela também é responsável por momentos interessantes, como o que ri quando perguntada como seria a mente do marido, e é colocada como um dos alicerces principais da atuação do empresário desde os tempos de Microsoft, bem como um testamento de como a cabeça dele funciona mesmo no âmbito pessoal.

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São aspectos que trazem um tom positivo à produção, mas que contrastam, como dito, com a clara intenção de se desviar das polêmicas. Os revezes das histórias também são apresentados de forma glorificada, como a tristeza de Gates ao perceber que terroristas estavam impedindo o trabalho de vacinação contra a pólio ou o heroísmo de suas declarações de que, ainda assim, a doença seria extinta em seis anos. Pouco, porém, se fala sobre as pessoas que estavam no solo para esse trabalho, mas o sangue delas fica muito bem gravado na mente de quem assiste.

Da mesma maneira, soa no mínimo estranho, para não dizer pueril, um dos primeiros conflitos apresentados pela minissérie, quando Gates, Melinda e outros retratados demonstram um verdadeiro assombro pelo fato de muitas pessoas não contarem com saneamento básico e morrerem de diarreia. A comparação com os próprios filhos chega a ser risível e soa bizarra saindo da boca de alguém que está na liderança de uma organização filantrópica dedicada, justamente, a combater os problemas do mundo.

Com a bolha estourada, seguem as inovações e desafios que dão o tom de toda a minissérie, com O Código Bill Gates demonstrando que o domínio completo do mercado de PC, os problemas familiares e as relações interpessoais complicadas foram fichinha perto do que está acontecendo fora do setor de tecnologia e da própria casa dos responsáveis pela Microsoft.

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Nesse sentido, que bom que essas pessoas saíram dessa zona de conforto e continuam exercendo seu poder e influência para, pelo menos, tentar mudar o mundo. Nesse sentido, a minissérie documental serve até mesmo como um fio de esperança. Mas esse, no final das contas, acaba sendo um dos pouco acertos reais de uma série que se propõe a uma coisa, se vende como outra e acaba entregando uma terceira completamente diferente, apesar da qualidade envolvida em todos os seus aspectos.