Crítica Black Knight | Série tem boas ideias que ficam pelo meio do caminho
Por Durval Ramos • Editado por Jones Oliveira |
Black Knight é um belo exemplo da função e da importância da ficção-científica dentro da cultura pop. Mais do que trazer mundos futuristas e brincar com as tecnologias do amanhã, o gênero serve para discutir o agora. E é isso o que a nova série da Netflix faz muito bem — e até de forma pouco sutil — ao criar toda uma analogia para refletir sobre a pandemia e seu impacto sobre questões sociais, governamentais e mercadológicas. O problema, contudo, é como e com que fim ela faz essa análise.
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A comparação entre o seriado e a nossa realidade ainda recente é mais do que óbvia. A história é centrada em uma Coreia do Sul que se transformou em um enorme deserto após um cataclisma climático que dizimou 99% da população. Com isso, o que restou da humanidade vive em assentamentos divididos em castas e dependendo de entregadores para sobreviver, garantindo desde oxigênio à comida.
E a ideia de conduzir essa narrativa por meio desses entregadores, tratando-os como os heróis desse mundo pós-apocalíptico ao melhor estilo Mad Max é realmente uma premissa muito boa, ainda mais quando espelha o nosso mundo e lembramos o quando fomos dependentes da categoria. Só que a produção tropeça tanto na execução quanto na mensagem, de forma que analogia e discussão perdem a potência esperada.
Que história quer contar?
Comecemos pela forma. Black Knight faz um ótimo trabalho para construir esse mundo pós-apocalíptico, criando uma realidade repleta de tensões em que tudo faz sentido. Ainda que esses elementos sejam apresentados tudo de uma só vez, o que deixa as coisas bem confusas no início, é fácil reconhecer as peças e as alegorias que o seriado propõe.
O conflito principal da trama está no tal sistema de castas, que divide a sociedade em classes distintas — refugiados, gerais, especiais e centrais —, com cada um vivendo em distritos específicos de Seul. Isso porque o governo está planejando um tipo de reorganização social mais abrangente do que aquilo que a Cheonmyeong, a megacorporação responsável pelo abastecimento da sociedade e produção de oxigênio, propõe.
É aí que a figura do herói 5-8 (Kim Woo-bin) entra em cena. Ele faz parte desse grupo de entregadores e é tido como uma lenda entre a população, embora a série não se preocupe em momento algum em explicar o porquê dessa admiração. E, embora seja um funcionário dessa grande empresa, ele tenta a todo custo impedir que ela dite as regras de como a Coreia deve se reerguer.
Como dito, é uma premissa bem interessante por vários motivos, mas com alguns tropeços que tiram sua potência. E, no caso da narrativa em si, a gente começa a ver esses deslizes a partir do momento em que o seriado decide que é melhor contar uma outra história que não é exatamente essa que é apresentada em seu primeiro episódio.
Boa parte dos seis capítulos desta primeira temporada são dedicados à jornada de um outro herói bem menos interessante do que 5-8 e o restante da milícia de entregadores. Até porque a saga de Sa-Wol (Kang You-Seok) é muito mais um desvio de rota do que algo que a gente quer realmente acompanhar.
As motivações iniciais até fazem sentido. Para um refugiado como ele, se tornar um entregador é a oportunidade de subir de vida e ter o mínimo de dignidade nessa sociedade tão estratificada. O problema é que isso não é aprofundado em momento algum e a série decide aglutinar algumas ideias e clichês que não só não fazem sentido para a história que está sendo contada como ainda atrapalham aquele cerne que era tão promissor no início.
De repente, entra toda uma trama sobre mutantes que não leva a lugar nenhum e há até espaço para iniciar um torneio para ver quem vai se tornar o novo entregador, com Sa-Wol sendo o grande azarão da competição. É um clichê bobo de anime que está sobrando demais por aqui.
E antes que alguém fale que isso está no webcomics que inspirou a série da Netflix, é sempre bom lembrar que adaptações servem justamente para adaptar e fazer com que essas histórias se encaixem dentro do formato proposto — o que não é o caso aqui. Ao seguir por esse caminho, Black Knight dá às costas para aquilo que tinha de mais forte para seguir por um caminho pouco inspirado e bem cansativo.
O resultado disso é que a crítica e a reflexão que essa analogia ao mundo que surgiu durante e por causa da pandemia se dissolve em meio a esse monte de plot sem sentido. E não só por serem bastante questionáveis em termos criativos, mas por não agregarem nada à trama em si. Toda a trama sobre mutantes, a doença do herdeiro da Cheonmyeong e até alguns plot twists são tão vazios que é nítido que o seriado está enrolando o público para render por seis episódios.
Seguindo a alegoria do entregador, é como se Black Knight seguisse pela rota mais longa e complexa para chegar ao seu destino. Ele passa por caminhos que não fazem sentido e não agregam para poder falar sobre temas como a influência das empresas em meio ao governo e higienismo social.
São discussões muito boas e pertinentes nesse momento pós-pandemia e era a oportunidade perfeita da série usar a ficção científica para levantar o debate. Só que, ao focar nas coisas erradas, tudo isso é jogado em segundo plano para priorizar o clássico torneio que todo mundo sabe como acaba. E, por mais que o roteiro ainda tente encaixar a crítica nessa parte mais boba, ela é feita sem potência alguma.
É claro que há boas sequências de ação nesse meio tempo, como durante todo o episódio dedicado à simulação da entrega. Contudo, o preço pago por esses momentos parece alto demais.
Discussões enviesadas
Se, na forma, Black Knight tropeça ao dar atenção demais a personagens e tramas não tão relevantes assim, o conteúdo da série também traz um misto de acertos e equívocos dos quais é impossível não falar.
Como dito, a ideia de discutir os reflexos da pandemia na sociedade é um acerto enorme do seriado. Mostrar esse futuro distópico que tem conexões tão fortes com a nossa realidade é bem impactante. Não apenas porque a sociedade que depende de máscaras para sobreviver ainda é algo muito recente em nossa memória, mas por causa de todas as situações que rodeiam tudo isso.
O sistema de castas da série reflete muito bem o impacto da pandemia nas diferentes camadas sociais não só da Coreia, mas em todo o mundo. E o seriado faz um bom trabalho em mostrar como os refugiados são tratados como vida descartável pela elite. Enquanto os mais pobres vivem de migalhas contando os segundos de oxigênio disponível no dia a dia, os moradores do Distrito Central vivem sob uma redoma que simula a vida normal antes do fim do mundo — e nem sequer precisam se preocupar com máscaras ou falta de ar.
Além disso, há todo o debate sobre a influência da megacorporação que fornece oxigênio, alimentos e transporte para manter todo este mundo vivo. A Cheonmyeong ser a grande vilã da história não é uma surpresa, mas é interessante ver como o seriado se propõe a mostrar como a sociedade pode se tornar refém de grandes empresas quando passa a depender delas para tudo, chegando ao ponto de ditar os rumos políticos e sociais do país.
É aí que as coisas começam a ficar um pouco mais complicadas. Como Black Knight dedica boa parte do seu tempo a seguir por uma trama que não leva a lugar nenhum, toda a crítica social presente na luta de 5-8 contra o sistema acaba sendo reduzida a alguns olhares um tanto questionáveis e desenvolvido às pressas.
Não que o debate sobre o papel dessas grandes empresas — sobretudo as farmacêuticas — não mereça ser questionado, mas a opção de tornar o vilão Ryu Seok (Song Seung-heon) em um empresário caricato que quer o poder a todo custo esvazia e enviesa a discussão para um caminho perigoso.
Ao colocar a farmacêutica como essa empresa maligna que literalmente dá um golpe de Estado, polui o ar para vender mais oxigênio e realiza um extermínio dos mais pobres a partir de vacinas, Black Knight adota um discurso muito perigoso dentro do contexto que a série mesmo propõe.
A partir do momento que o seriado decide usar a ficção-científica para falar de pandemia e seus impactos sociais, ele traz um discurso antivacina um tanto quanto perigoso e que não é ponderado em momento algum e que chega a ser panfletário em um nível incômodo.
Perda de potência
Black Knight tinha um potencial incrível nas mãos. Embora muitas produções tenham falado de pandemia nos últimos anos, a série sul-coreana é uma das poucas que ousou usar a ficção-científica para fazer uma discussão mais profunda em temas que são realmente relevantes. Contudo, ela parece ter se empolgado com isso e contado coisas demais dentro de apenas seis episódios.
O resultado é que ele desperdiça um tempo precioso que poderia ser usado para aprofundar personagens — como o próprio 5-8, cujo passado é apenas pincelado sem grandes desenvolvimentos — e dar à discussão proposta a seriedade que lhe convém. Mas não é o que acontece.
Ao preferir ser meio-anime, com direito à “saga do torneio” e tudo, ele esvazia muito das boas ideias que apresenta e não consegue levar os debates ao patamar que eles exigem. E, por mais que traga boas cenas de ação e uma estética muito interessante, Black Knight se torna apenas uma entrega mediana.
Black Knight pode ser assistida pelos assinantes da Netflix.