Viral no TikTok | 'Trend dos privilégios' emociona, mas pode prejudicar crianças
Por Nathan Vieira • Editado por Melissa Cruz Cossetti |

Nos últimos meses, uma nova onda tomou conta do TikTok: a chamada “trend dos privilégios”. A dinâmica é simples e, à primeira vista, inofensiva. Alguém faz perguntas relacionadas à infância, e os participantes dão um passo à frente quando a afirmação é verdadeira para eles. Exemplos comuns envolvem ter tido brinquedos, viagens ou maior estabilidade na infância versus ter enfrentado dificuldades. Com isso, o vídeo mostra diferenças entre gerações e experiências familiares, emocionando o público com cenas de pais e filhos relembrando suas trajetórias.
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A dinâmica costuma reunir diferentes gerações (pais e filhos, avós e netos) posicionadas lado a lado, enquanto alguém lê afirmações sobre a infância. A cada frase verdadeira, a pessoa dá um passo à frente. O resultado visual é uma “linha do tempo corporal” que evidencia contrastes: quem teve mais conforto avança mais, quem viveu dificuldades fica para trás.
O tom geralmente é emocional e reflexivo, com muitos vídeos destacando conquistas familiares e desigualdades entre realidades. Essa estética sensível, somada à música e às reações espontâneas das crianças, é o que impulsiona o engajamento e torna a trend tão compartilhável.
Apesar da intenção positiva de promover empatia e reflexão sobre desigualdades, especialistas alertam que a exposição emocional infantil nas redes sociais pode ter efeitos perigosos.
Em entrevista ao Canaltech, a psicanalista Ariana Moura, doutora pela Université de Paris e professora do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), diz que as crianças não compreendem completamente o contexto desse tipo de conteúdo e, por isso, não têm real capacidade de consentir com essa participação.
“Quando a criança participa de uma trend da internet, ela está entrando em uma dinâmica que não consegue entender completamente”, explica Ariana.
A criança, não compreende ou consente.
“É uma exposição pública guiada por um roteiro criado por outras pessoas. Se ela não compreende o significado e as consequências dessa exposição, será que podemos dizer que consente?”, acrescenta.
A reflexão vai além da compreensão: há impactos possíveis no desenvolvimento emocional. Para Ariana, inserir uma criança em um “palco” digital pode fazê-la acreditar que seu valor depende do olhar do público — curtidas, comentários e aprovação.
“Ela está exposta a uma cultura do espetáculo”, destaca a psicanalista. “Em uma fase em que ainda descobre quem é, isso pode levá-la a concluir que precisa agradar o olhar do outro. Adeus espontaneidade", reitera.
Outro ponto a se observar é que os comentários negativos podem ser devastadores. Mesmo sem intenção de machucar, internautas muitas vezes fazem julgamentos cruéis, e crianças ainda não têm maturidade emocional para lidar com rejeição e comparações sociais.
Como identificar sinais de alerta?
Ariana orienta os responsáveis a observarem mudanças no comportamento. A criança pode demonstrar vergonha, culpa por ter privilégios ou preocupação obsessiva com a própria imagem e desempenho do vídeo.
“Se a preocupação com curtidas ou comentários toma o lugar da escola e do brincar livre, ou se surgem crises de choro, agressividade, ansiedade ou isolamento, é preciso atenção", explica.
A especialista reforça que o diálogo é essencial, não apenas perguntar se a criança quer participar, mas entender por que ela quer e explicar o impacto dessa exposição.
“Importante não transformar a criança em produto. Sentimentos complexos precisam ser acolhidos na intimidade, não convertidos em espetáculo", afirma.
Uma alternativa sugerida é permitir que a criança brinque de copiar conteúdos, mas mantendo os vídeos privados ou apenas para a família. No fim, a trend dos privilégios pode mesmo gerar emoção e reflexão, mas a infância não deveria ser palco de validação social. Entre viralizar e proteger o desenvolvimento emocional da criança, o bem-estar deve sempre vir primeiro.
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